quinta-feira, 18 de abril de 2019

A pastoral americana - Fordilândia

Henry Ford tentou, sem sucesso, produzir borracha e utopias na Amazônia

Carlos Haag
Abril 2009

© Reprodução do livro Fordlandia, de Greg Grandini


Em novembro de 1938 Joseph Goebbels assistiu entusiasmado à estreia de O inferno verde, dirigido pelo cineasta alemão Eduard von Bosordy, rodado em grande parte na selva amazônica: “Uma película valorosa, política e artisticamente”, elogiou o ministro da Propaganda nazista. O filme, embora inspirado num fato histórico, era uma fantasiosa defesa do colonialismo e tinha como “herói” e protagonista o explorador inglês Henry Wickham (1846-1928), que, após enfrentar índios com flechas venenosas, piranhas, crocodilos e uma anaconda imensa, retorna ileso para a Inglaterra com 70 mil sementes da Hevea brasiliensis, a seringueira, disposto a replantá-las na Malásia britânica e, assim, destruir o monopólio brasileiro da borracha. Curiosamente, naquele mesmo ano, o industrial americano Henry Ford (1863-1947), fundador da Ford Motor Company e o primeiro empresário a aplicar a montagem em série para produzir automóveis em massa, viajou à Alemanha para receber, tal qual um herói, uma alta condecoração por seu apoio ao nazismo e à luta antissemita (Hitler tinha uma foto dele em seu gabinete). Na ocasião, Ford disse aos repórteres que a Fordlândia, a desastrada tentativa do americano em estabelecer uma plantação de borracha na Amazônia entre 1927 e 1945, estava à disposição para receber judeus “indesejados” pelos alemães, já que “são meus melhores trabalhadores lá na América”.

O “encontro” de Wickham e Ford, ambos ligados aos altos e baixos da economia brasileira da borracha, um ano antes do conflito que colocaria o colonialismo do primeiro em xeque e revolucionaria o imperialismo do último, e faria ambos dependentes dessa mesma economia, revela a notável e inusitada associação entre essas duas figuras. Ao “roubar” as sementes e ajudar na transferência do monopólio da borracha do Brasil para a Inglaterra, Wickham não poderia imaginar que, em 1922, poucas décadas após sua empreitada, os ingleses abririam mão do discurso liberal e se veriam obrigados a distorcer o mercado da borracha, diminuindo a produção, superestimada, para tentar aumentar os preços do produto, antes cotado a peso de ouro. Essa guinada, por sua vez, empurraria os americanos, em particular Ford, cuja imensa produção de automóveis requeria borracha a preços baixos, a entrar na concorrência da produção de seringueiras no Brasil, um desafio à “descortesia” comercial britânica. O resultado dessa aventura ianque seria a Fordlândia, um projeto utópico de recriar, na selva, uma América que, segundo Ford, havia sido conspurcada pelo capitalismo que ele próprio ajudara a fortalecer. Ao lado de sua cidade--irmã, Belterra, ambas próximas ao rio Tapajós, custaram a Ford mais de US$ 20 milhões, em valores da época. O investimento inicial previsto para estabelecer uma plantation eficiente de borracha no Brasil que pudesse abastecer a demanda interna da Ford Company era de menos de US$ 2 milhões. “Em duas décadas, Ford gastou milhões de dólares e acabou sem sua plantation, devastada pela falta de trabalhadores e pelo mal das folhas, mas com duas cidades ‘americanas’, hoje abandonadas, com praças centrais, calçadas, chalés estilo suíço, hospitais, lojas, cinemas, campos de golfe, piscinas e, é claro, Ford modelos T e A circulando pelas ruas de terra batida”, explica o historiador Greg Grandin, professor associado da New York University e autor de Fordlandia: the rise and fall of Ford’s forgotten jungle city, a ser lançado nos EUA em junho. Ironia à parte, acaba de ser lançado The thief at the end of the world, de Joe Jackson, que conta a vida de Wickham.
© Reprodução/Hart Preston/life
Vargas visita Belterra em 1940. Ao fundo, o retrato de Ford
Afinal, tudo começou na Amazônia, a partir da descoberta da utilidade comercial da seringueira, já em 1750, pelos portugueses. Quando, em 1839, Charles Goodyear criou o processo de vulcanização, que modificava a borracha e permitia que ela fosse utilizada em altas temperaturas, o Brasil era o único país em que a matéria-prima era encontrada, ainda que por um “acidente geográfico”. Até a virada do século XX, o país era responsável por 90% da borracha comercializada no globo. “A indústria brasileira consistia de uma estrutura baseada no extrativismo direto da floresta, com escassez de mão de obra e ausência total de competição. Esse sistema funcionaria bem enquanto a demanda por borracha não crescesse muito e que outra forma de exploração, mais racional, entrasse na competição. Entre 1900 e 1913 essas condições desapareceram”, observam os economistas Zephyr Frank, da Stanford University, e Aldo Musacchio, do Ibmec. A popularização mundial da bicicleta deu início ao “boom da borracha”, intensificado em muito, a partir de 1900, com o desenvolvimento da indústria do automóvel. “O aumento da demanda fez os preços subirem como foguete e isso foi um grande incentivo para a entrada de outros produtores no mercado. O contrabando das sementes por Wickham, ao resolver o dilema de qual seria a fonte da borracha de boa qualidade dos brasileiros (até o século XIX, várias expedições científicas tentaram sem êxito localizar a árvore exata e transportar suas sementes com segurança para Londres), fez a balança pender para o lado europeu”, notam. A Ásia era dominada pelo sistema colonial inglês e holandês, oferecia mão de obra barata, ao contrário da brasileira, cara por ser escassa, e condições ideais para transformar uma atividade extrativista numa indústria eficiente organizada em plantations de baixo custo. “Enquanto a borracha brasileira era coletada na selva, a produção não poderia ir além de 40 mil toneladas por ano por melhor que fosse o preço. Essa quantidade era insignificante em face das crescentes aplicações industriais da borracha”, escreve Warren Dean em seu A luta pela borracha no Brasil.

© Fotos reprodução
Henry Ford: utopia na selva
Os ingleses demoraram a iniciar suas plantations, mas quando o fizeram foram, sem querer, longe demais. “A produção dos plantios orientais cresce mais do que as necessidades do mercado, acumulando estoques e fazendo cair a cotação do produto. O governo inglês, então, se vê obrigado a intervir com uma política de restrição da produção para impor preços mais elevados, o chamado Plano Stevenson. Governo e empresas americanas, pegos de surpresa no auge da demanda em face do crescimento das suas indústrias, passam a pregar a doutrina do ‘é necessário produzir borracha sob controle dos EUA’”, explica o economista Francisco de Assis Costa, da Universidade do Pará. “Se as oligarquias do café, beneficiadas pelas políticas de valorização do governo, têm as portas do financiamento internacional abertas, a oligarquia da borracha, na Amazônia, está em abandono e decadência após o cultivo dos ingleses na Ásia. Quando sabem dos planos dos EUA, imediatamente decidem que ‘a Amazônia quer os americanos’. A possibilidade de ter capitais apenas aceitando a ocupação da região remota era, para eles, a ocasião ímpar de recriar uma Amazônia útil na federação. O que era apenas intenção dos americanos transforma-se no centro de uma proposta política nacional de ocupação de uma região para a qual não se tinha nenhuma política”, analisa Costa. Na América, porém, a conclamação do então secretário de Comércio (e futuro presidente dos EUA), Herbert Hoover, para que empresários americanos investissem no cultivo da borracha na América Latina, como forma de fugir ao cartel inglês, inclusive enviando expedições científicas ao Brasil com este fim, só encontrou eco em dois empreendedores: Harvey Firestone, que preferiu investiri em plantations na Libéria; e Henry Ford, que, em 1924, havia tentado, sem sucesso, cultivar borracha na Flórida.

“Mas não foi apenas a busca por fontes de matéria-prima mais barata que fez Ford voltar-se para o Brasil. Aos 60 anos, ele estava desiludido com os rumos tomados pela América. Dizia-se frustrado com a política doméstica e abominava a adesão americana à guerra, os sindicatos, Wall Street, os monopólios de energia, os judeus, dança moderna, Roosevelt e seu New Deal, cigarros, álcool e a crescente intervenção do governo nos negócios”, observa Grandin. “Era uma espécie de ‘pastoral americana’ que não via oposição entre natureza e industrialização. Para gente como Ford, era possível reunir agricultura e indústria, já que a mecanização marcaria não a conquista, mas a realização dos ‘segredos’ da natureza. A sua pretensão era de que os americanos tivessem como missão recriar o Éden capitalista”, completa. “Não estamos indo para o Brasil para fazer dinheiro, mas para ajudar a desenvolver aquela terra maravilhosa e fértil. Vamos treinar os brasileiros e eles vão ser ótimos profissionais como os nossos”, afirmou Ford. Num paradoxo, nota Grandin, o mesmo homem que ajudou a libertar o poder da industrialização e revolucionou as relações humanas passou o resto da vida tentando recolocar o gênio na garrafa. “A Fordlândia representa de forma cristalina a utopia que movia Ford então, e por extensão o ‘americanismo’. Revela a fé que o movimento em direção a uma maior eficiência pode ser manipulado de forma a que a tecnologia, sem intromissão do governo, pode resolver qualquer problema social que surja do avanço do progresso”, analisa o historiador. Fordlândia seria então uma parábola de arrogância, mas de outra espécie, apenas uma exibição do poder de Ford em domar a natureza selvagem. “A verdadeira arrogância do empreendimento era que ele acreditava que as forças do capitalismo, uma vez libertadas, poderiam ser controladas por sua vontade”, acredita Grandin.
© Fotos reprodução
Hospital (acima), plantação (centro) e baile tradicional: a cidade de Ford no seu apogeu
Após tentar recriar seu Éden no Meio-Oeste americano, Ford, frustrado, recebeu a visita, em 1925, do diplomata brasileiro José Custódio de Lima, que há dois anos cortejava o industrial com ofertas de investimento no Brasil, mas, dessa vez, foi com carta branca do governador do Pará oferecendo, ao americano, concessões de terras e isenção de impostos. Desde 1914, a Ford Company operava no país e, naquele ano, a empresa tinha o monopólio nacional de veículos. Ford era visto pela elite industrial brasileira como o “Moisés do século XX”, como se referiu a ele um importante industrial paulistano (talvez desconhecendo o antissemitismo de Ford). Monteiro Lobato, que traduzira a sua biografia para o português, via nele o “Jesus Cristo da indústria”, cuja vida era “o evangelho messiânico do futuro”. Não se pode negar o mérito do homem que, na conversa com Lima, ao saber que um seringueiro ganhava 50 centavos de dólar por dia de trabalho, disse que “era preciso pagar no mínimo US$ 5, pois os brasileiros não devem trabalhar como escravos”. A imprensa amazonense, ao saber do interesse de Ford, encheu-se de entusiasmo. “Os jornais contrários à sua vinda são classificados como ‘jornais vermelhos’. Enquanto a imprensa se rejubilava com a vinda do capital estrangeiro, ‘esses esquerdistas’, escreveu um editorialista da época, ‘movem essa campanha de descrédito, criminosa e ingrata que reflete a pequenez desses patrioteiros que querem salvar o país;mas não será o ladrido dos rafeiros que há de afastar os dólares de Ford da ubertosa Amazônia’. Há também críti­cas fortes contra os paulistas, em especial os estudantes que teriam, notam os jornais do Pará, lembrado da região não para ajudá-la, mas para protestar contra o capital estrangeiro”, conta a geógrafa Elaine Lourenço, do Centro Universitário Nove de Julho. Não faltou na história o típico espertalhão: Jorge Dumont Villares, sobrinho de Alberto Santos Dumont. Segundo Grandin, ciente do interesse potencial dos americanos na região, Villares teria se aliado a funcionários americanos, incluindo-se um cônsul e um membro da comissão científica enviada em 1923 ao Brasil, para garantir junto ao governo do Pará a opção de compra de uma área de 2,5 milhões de acres no vale do Tapajós. Quando Ford enviou uma equipe para avaliar o melhor lugar a instalar sua plantação de borracha, conta o historiador, mostraram a eles apenas a área sob controle de Villares, que lucrou na negociata US$ 125 mil em terras que as autoridades paraenses pretendiam doar para a empresa americana. Mesmo o avaliador de Ford teria entrado na trama, descrevendo a região em “tintas dignas de um romance de Dickens, pronto a despertar em Ford o desejo de intervir e salvar aquela população da degradação, do vício, do álcool e da pobreza”. “Para confirmar que a lógica que empurrava Ford para a Amazônia ia além das leis da oferta e da procura, no momento em que recebeu o relato sobre a região ele já estava ciente de que o cartel inglês estava para ser desmontado, porque os holandeses não haviam aderido a ele. Ford foi aconselhado a desistir da ideia da plantation, mas foi adiante, ainda que os preços da borracha estivessem em queda”, conta Grandin. “Vou ver minhas terras de avião com meu amigo Charles Lindbergh”, disse Ford ao revelar para a imprensa seus planos.


Ele nunca veio, mas dois navios chegaram em 1927 ao Brasil com material tecnológico de última geração suficiente para criar uma “cidade americana” na selva. O contrato da criação do empreendimento na Amazônia explicitava que não haveria nenhuma forma de inserção brasileira nas atividades de Ford em território nacional. No ano seguinte, quando se iniciaram de verdade as operações de Ford, morreu Henry Wickham, apelidado, então, de “Henry I”: lembrando a “traição” passada, a imprensa brasileira começava a questionar a “invasão ianque” no Amazonas. As coisas não iam mesmo bem: o primeiro diretor da companhia, mal chegado na região, cometeu vários erros, incluindo-se o desflorestamento de uma vasta área para abrigar as instalações, destruindo a madeira preciosa que Ford via como forma de recuperar parte do seu investimento. O novo encarregado foi o comandante dos barcos que levaram o material, no espírito fordista de não confiar em especialistas, um engano que se provaria fatal para o empreendimento. “A estruturação da companhia se baseava na utilização de equipamentos avançados, por uma divisão acentuada de trabalho e por relações capitalistas de produção que iam de encontro à mentalidade da mão de obra local. Havia ausência de capital social básico e uma falta de conhecimento científico para o plantio e, acima de tudo, pela falta de um mercado de trabalho nas dimensões requeridas pelo empreendimento”, analisa Costa. Dados recolhidos pela companhia indicavam um potencial de 30 mil homens, volume razoável para que o negócio prosperasse nas bases fordistas. A rea­lidade, porém, era outra: “Há muita gente sem emprego e solta por aí, mas quando você fala em trabalho para eles retrucam na sua cara que esse tipo de trabalho não interessa a eles. Preferem o trabalho sazonal, seja na agricultura, seja nas seringueiras e poucos se interessam pela Fordlândia”, exasperava-se um executivo americano.

“Tendo acesso relativamente livre à terra e aos recursos da natureza, dispondo assim dos meios de subsistência, o trabalhador negou-se a se submeter ao sistema fabril fordista, com horários, uniformes, cartão de ponto, sirenes de fábricas e pelo assalariamento”, explica Costa. Moralista, Ford proibia o consumo de bebidas alcoólicas e prostituição dentro dos portões da fábrica, o que obrigava os trabalhadores a “escapulir” para regiões vizinhas, apelidadas de “Ilha dos Inocentes”, que passaram a concentrar criminalidade e violência. Os americanos igualmente não se interessavam em aproximar-se dos brasileiros. A piada corrente dizia que após um ano na Fordlândia um americano sabia dizer “uma cerveja”; após dois anos, já conseguia falar, em português, “duas cervejas”. As casas, feitas em moldes americanos, não serviam ao clima nem ao temperamento nacional, com seus telhados baixos e janelas grandes que permitiam a entrada de mosquitos. Ainda assim as moradias eram regularmente visitadas por agentes da inspeção sanitária que cobravam dos trabalhadores, em casa e nas ruas, hábitos de higiene. Havia escola para as crianças e os salários, relativamente altos, eram pagos com total pontualidade. Ford preconizava ainda que se plantassem flores diante das soleiras, o que, segundo ele, era uma forma de embelezar o local de trabalho. O relógio de ponto, porém, era odiado pelos funcionários, cujos horários também eram regulados, nos moldes capitalistas modernos, por apitos e por fiscais. Ford exigia que a comida fosse saudável e os caboclos se viram obrigados a comer aveia no café da manhã, abrindo mão do feijão e da farinha. A mera mudança do sistema de alimentação gerou uma crise que colocou a vida dos americanos em risco. Em vez de serem servidos pelas mulheres, os trabalhadores, certo dia, se depararam com uma cafeteria com bandejões. “Não somos cachorros”, foi o grito geral. A equipe de Ford se viu obrigada a passar a noite num barco no meio do rio, sendo resgatada no dia seguinte por um destacamento policial. Voltaram a comer o bom feijão.



Sem mão de obra suficiente, insistindo em aplicar métodos fordistas na região e com um parco conhecimento do cultivo da seringueira, o empreendimento não prosperava. “Em 1929, a companhia já havia gasto mais de US$ 1,5 milhão e tinha pouco a apresentar. Por volta de 95% das sementes plantadas não germinaram ou morreram e metade da madeira retirada foi perdida ao ser queimada. Fordlândia crescia em grandes proporções, mas as instalações, elaboradas, nada tinham com o negócio central do projeto: produzir borracha. Apenas em 1933, em desespero, é que a companhia Ford chamou James Weir, um técnico em agricultura que trabalhara com seringueiras na Ásia”, conta Grandin. A proposta de Weir, diante da praga que consumia as árvores, foi radical: abandonar Fordlândia, que se transformaria num local de experimentos contra o mal das folhas, e criar uma nova plantação em Belterra. “Num reverso do contrabando das sementes de Wickham, Weir propôs que se importassem novos híbridos da Malásia, justamente aqueles gerados a partir da pirataria do inglês. Para piorar, o novo local escolhido era próximo do sítio onde Wickham havia coletado as sementes 57 anos antes”, revela o historiador. Como se não bastasse, o empreendimento teve problemas com o governo local, que viu na importação a repetição do golpe britânico. Para sorte de Ford, a revolução de 1930 colocou Vargas no poder, cujo nacionalismo sabia compactuar com o capital estrangeiro, em especial para cumprir sua promessa de recuperar a Amazônia. Convidado pela família Ford, Vargas visitou Belterra em 1940 e saudou o trabalho do americano como um exemplo a ser seguido. “Ainda assim a Companhia Ford do Brasil foi incapaz de se estruturar seja para o lucro, seja para atender às necessidades da Ford Company. E isso em decorrência da incapacidade de formar a massa de meios de produção para obter a borracha. Incapaz de subordinar a força de trabalho em volume adequado, não conseguiu atingir níveis de produção que permitissem lucro e muito menos para alcançar escalas maiores de produção”, observa Costa.

A Segunda Guerra Mundial e a necessidade por borracha, já que a Ásia britânica estava em mãos dos japoneses, trouxeram uma tentativa de galvanizar o empreendimento fordista com a chegada de técnicos americanos, investimento de dinheiro de Washington (para horror do liberal republicano Ford). Afinal, como afirmou o presidente Roosevelt: “Não se pode fazer a guerra moderna sem borracha”. O esforço internacional e o recrutamento dos chamados “soldados da borracha” não mudaram o quadro terrível em Fordlândia e Belterra. Em 1937, 1.200 acres foram desflorestados para receber mais de 2,2 milhões de sementes. Em 1941 o número aumentou para 3,6 milhões. Em 1942, porém, a produção não conseguiu ir além de meras 750 toneladas de borracha, uma fração das 45 mil toneladas extraídas no auge do boom da borracha. Após gastar US$ 20 milhões, Ford vendeu tudo ao Brasil por US$ 500 mil.

“Em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, as novas possibilidades abertas com a produção da borracha sintética, a própria especialização da Ford, que passara a concentrar sua indústria somente nos automóveis, e diante das resistências naturais e humanas, a companhia devolveu sua concessão ao governo brasileiro, que a indenizou pelas benfeitorias realizadas”, observa Elaine Lourenço. Em 1950 as duas cidades foram abandonadas. “Em maio de 1951 chegou o primeiro carregamento de látex de Cingapura no porto de Santos, produzido das árvores que descendiam diretamente das sementes roubadas por Wickham exatos 75 anos. Desde então o Brasil se viu obrigado a importar látex para fazer frente à sua demanda por borracha”, completa Grandin. Na criação de um império da borracha, o aventureiro colonial Henry I foi mais bem-sucedido do que o empreendedor moderno Henry II.
Revista FAPESP

Ciganos: Sem destino

Ciganos: Sem destino
A história dos ciganos, que hoje são cerca de 12 milhões espalhados pelo mundo inteiro, não é tão colorida quanto eles: teve diáspora, perseguição, escravidão e genocídio
por Isabelle Somma
Em uma determinada noite do começo dos anos 40, o médico nazista alemão Josef Mengele reuniu 14 pares de gêmeos no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia. Colocou as crianças sobre sua mesa e as fez dormir. Calmamente, injetou clorofórmio em suas veias. A morte foi instantânea. Mais tarde, as abriu e meticulosamente dissecou seus cadáveres.

As crianças não eram judias. Eram de um outro grupo cuja história também é marcada por diáspora, perseguições, escravidão e genocídio, especialmente na Segunda Guerra. Os ciganos – termo genérico para designar grupos que se autodenominam rom, calon e sinti, entre outros – podem ser encontrados em várias partes do mundo, divididos em culturas, religiões e línguas diferentes. Alguns têm o dialeto, a profissão ou apenas a opção pela vida itinerante. O que todos os cerca de 12 milhões espalhados pelos cinco continentes têm em comum é uma longa história pautada pelo preconceito. Que continua ainda hoje.

Pouco se sabe sobre a origem dos ciganos – que, assim como quase tudo que diz respeito a eles, está marcada por fantasias. Alguns dizem que eles descendem de egípcios do tempo dos faraós. Outros, de uma região conhecida como “Novo Egito”, na Grécia – daí a palavra “cigano”, que vem de “egipciano”. Essa história, contudo, é totalmente descartada por estudiosos do assunto. Para eles, os ciganos teriam vindo do Paquistão e do norte da Índia, nos atuais Rajastão e Punjab. A maior prova disso vem de estudos lingüísticos. O romani, a língua falada por eles, possui grandes semelhanças com o hindi, falado na Índia. A análise biológica corrobora essa tese. Um estudo realizado com integrantes de comunidades ciganas da Europa demonstrou que era possível traçar a origem indiana de boa parte dos ciganos pesquisados.

Grupo migrante

Dali, um grande contingente teria partido em uma espécie de diáspora. Ainda hoje existem comunidades ciganas na Ásia, assim como nos locais por onde passaram até chegar à Europa, como o Oriente Médio e norte da África. “Por que e quando eles deixaram a Índia, quais foram os grupos que fugiram e como se relacionavam entre eles ainda é tema de debate entre os estudiosos”, diz David Nemeth, professor de Geografia e Planejamento da Universidade de Toledo, em Ohio, nos Estados Unidos, especialista em povos nômades. “Alguns dizem que todos deixaram a Índia de uma vez, há mil anos. Outros dizem que eles foram saindo gradualmente.”

Um problema, de acordo com os especialistas, é falar dos ciganos como se eles fossem um grupo racial, um povo. “A explicação da origem indiana dos ciganos dá a falsa impressão de que eles são um grupo fechado, constituído como uma unidade isolada na Índia e que viajou mantendo essa integridade”, afirma a antropóloga Florencia Ferrari, cuja pesquisa de doutorado na Universidade de São Paulo é sobre ciganos de São Paulo. Na verdade, eles apresentam uma grande mistura.

O estudo lingüístico aponta uma provável data em que a maior leva de ciganos teria deixado seu território de origem: meados do século 11. Esse período coincide com a invasão, ao norte do subcontinente indiano, do sultão persa Mahmoud Ghazni (971-1030). Acredita-se que o sultão vitorioso teria expulsado essa população, provavelmente uma casta de guerreiros, do território conquistado entre 1001 e 1026.

Há outras teorias para o movimento dos ciganos. Alguns especialistas supõem que eles pertençam a um antigo grupo de viajantes que nunca parou de se deslocar. Outros, que eram grupos sedentários forçados a deixar a Índia devido à expansão de outros povos. Também não se descarta que eles eram párias expulsos de suas terras.

Tudo isso é suposição por causa da falta de relatos escritos sobre o assunto. Os ciganos mantêm sua história através da tradição oral – e muito do que se passou entre eles foi perdido. Segundo Isabel Fonseca, autora de Enterrem-me em Pé – A Longa Viagem dos Ciganos, o primeiro documento escrito que menciona os ciganos é um contrato de compra e venda do século 10. Mais tarde, monges relatam sobre os “atsiganoi”, povo itinerante de adivinhos e ventríloquos que visitou o imperador bizantino Constantino IX em 1054.

A diáspora cigana levou-os a migrarem a oeste, fazendo com que se espalhassem pela Europa a partir do século 14. “Quando apareceram pela primeira vez na Europa, os ciganos apresentaram-se como peregrinos e liam a sorte: duas boas profissões numa época de superstição”, afirma a autora. Os grupos começaram a percorrer com maior assiduidade certas regiões, e acabaram adotando a língua e a religião delas. Mas sem perder seus próprios costumes e língua.

Perseguição e caça

Dessa mesma época já datam os primeiros registros de perseguições contra os ciganos. Em 1471, leis contra eles foram aprovadas na Suíça. Na península Ibérica, a chamada Reconquista Cristã, em 1492, significou não apenas a expulsão de árabes e judeus, mas de ciganos também. No século 16, os ciganos também foram expulsos da França, durante o reinado de Luís XII, e da Inglaterra, pelo rei Henrique VIII. Mais tarde, Elizabeth I fez pior: durante seu reinado, entre 1558 e 1603, uma lei tornava ilegal ser um cigano. Isso quer dizer que a pessoa era condenada à morte simplesmente por ser filha de pais ciganos. “Eles se tornaram os últimos bodes expiatórios dos males sociais da sociedade do período Tudor”, afirma Thomas Acton, professor de Estudos Romani da Universidade de Greenwich, Inglaterra.

A perseguição nos Bálcãs foi ainda mais aguda. A partir do século 13, os ciganos foram vistos como estrangeiros que não eram bem-vindos. Acabaram escravizados. A libertação ocorreu apenas em 1864. Na Romênia não foi diferente: os ciganos foram feitos escravos lá até o século 19. Em 1445, o príncipe Vlad Dracul, da Valáquia (antiga província da Romênia), escravizou em seu país cerca de 12 mil pessoas da Bulgária. Essa gente, de acordo com registros da época, “parecia egípcia”. Vlad Dracul, apenas a título de curiosidade, é pai do príncipe que ficou conhecido pela alcunha de Drácula.

A partir do século 16, países como Suíça, Holanda e Dinamarca, passaram a promover o que ficou conhecido como “caçada aos ciganos”. Ela funcionava mais ou menos como uma caçada a raposas mesmo, quase um esporte. Não era preciso o sujeito ter cometido crime algum para ser aprisionado ou morto como um animal. Recompensas e honras eram prestadas aos que participavam das caçadas. Na Dinamarca, por exemplo, uma grande caçada foi marcada para o dia 11 de novembro de 1835. O resultado foram 260 homens, mulheres e crianças presos ou mortos.

Preconceito
Alguns pesquisadores acreditam que a origem do preconceito contra as comunidades ciganas esteja relacionada com as profissões com as quais eles ganhavam a vida. Segundo Nemeth, os ciganos historicamente lidam com três ramos de ocupação nada bem vistos na Idade Média. Eles estão associados à indústria da “diversão”, como músicos, dançarinos e adivinhos, da “morte”, como açougueiros, e da “sujeira”, como ferreiros. Várias lendas populares pipocaram na Europa na Idade Média. Uma delas é a de que o ferreiro que fez os pregos colocados em Jesus na cruz era cigano. Jesus então teria amaldiçoado todos os ciganos com uma vida de vagância.

Aliás, é o nomadismo o fator apontado como o principal motivo da desconfiança que vários povos alimentaram contra eles. “A estigmatização da vida errante se tornou um fator de demonização daqueles ciganos que eram nômades comerciais”, afirma Acton. A necessidade de deslocar-se pela lunga drom – ou “longa estrada”, em romani –­, geralmente em coloridas caravanas, fez com que os ciganos tivessem um contato mínimo com o mundo gadjikane – “não-cigano”. Assim, o grupo continuaria com seu estilo de vida. A história da polonesa Papuzsa (“boneca” em romani) é prova de que muitos grupos temem que seu modo de vida seja alterado pela revelação de seus costumes. Harpista, ela compunha música e poesia contando os sofrimentos de seu povo. No fim da década de 50, um poeta publicou a tradução de seus poemas em polonês, à revelia da vontade de Papuzsa. Resultado: foi expulsa da comunidade por traição. Morreu em 1987, só e esquecida.

A partir do fim do século 18, com a ascensão do capitalismo industrial e a rápida urbanização, o que era visto como uma diferença apenas cultural passou a ser visto como um comportamento motivado por uma questão racial. O racismo culminou com a Segunda Guerra Mundial. Além de judeus, homossexuais, comunistas e opositores do regime, os nazistas também perseguiram implacavelmente os ciganos. Eles foram deportados para campos de concentração e foram alvo dos einsatzgruppen, esquadrões móveis de extermínio. Não há estatísticas exatas sobre o número de vítimas, mas estima-se que, dos cerca de 1 milhão de ciganos que viviam na Europa antes da guerra, pelo menos 500 mil tenham sido eliminados no Holocausto.

Com o fim do conflito, muitos deles imigraram para os Estados Unidos – que, atualmente, é o país com o maior número de ciganos no mundo, cerca de 1 milhão. A última lei contra os ciganos no país, que impedia a entrada deles no estado de Nova Jersey, só foi eliminada na década de 90. Os que ficaram na Europa, no entanto, continuaram a ser sistematicamente perseguidos por diferentes governos. Na Bulgária, a língua e a música ciganas foram proibidas. Na antiga Tchecoslováquia e na Noruega, políticas oficiais promoveram campanhas de esterilização de mulheres ciganas. Até 1972, o governo suíço tomava crianças ciganas de seus pais para serem criadas por famílias não-ciganas.

A maioria deles, 8 milhões, ainda vive na Europa. É a maior minoria sem país do continente. A partir de 1989, começaram a surgir partidos políticos ciganos, que tentam reverter políticas discriminatórias. Atualmente, há programas de televisão falados na língua romani na Romênia e na Macedônia. Se, por um lado, isso pode ser um fator que ajude a diminuir o preconceito em alguns locais, por outro pode também significar a absorção dos ciganos pela cultura gadjikane. O destino deles, porém, é difícil de ser lido.



Ciganos pelo mundoA relação entre os vários grupos ainda não é conhecida
Há diversos grupos de ciganos espalhados pelos cinco continentes. Abaixo estão os principais. Muitos falam uma língua próxima, o romani (ou romanês) – com muitas palavras emprestadas de línguas locais. Grupos que vivem no Brasil, por exemplo, dizem: “Vamos pinhá o paim”. Querem dizer: “Vamos beber água” – a estrutura é a do português, mas com palavras em romani. Grupos de viajantes, como artistas circenses, são confundidos com os ciganos por serem nômades.

Erlides

Também conhecidos como yerlii ou arli, os erlides são mais comuns em comunidades localizadas no sudeste da Europa e na Turquia. Muitos deles são muçulmanos ou cristãos ortodoxos. Há ainda pequenos grupos na Palestina, Jordânia e também no Iraque.

Roma

Os rom, ou roma, têm origem não-ibérica e são o grupo mais numeroso. Tanto que possui subgrupos, como os kalderash, matchuara, lovara e tchurara. Podem ser encontrados na Europa (especialmente nos Bálcãs), nos Estados Unidos e no Brasil. “Muita gente confunde os roma com os romenos. Há ciganos romenos, mas nem todo romeno é cigano”, diz o professor David Nemeth.

Gitanos

Chamado também de calon, o grupo é encontrado principalmente na península Ibérica, no norte da África e no sul da França. Na Espanha, os gitanos são associados à música e à dança – o flamenco é considerado de origem gitana. O mais famoso é o grupo francês Gipsy Kings. No Brasil, há uma grande quantidade de grupos calon, que se dedicam ao comércio de carros, mantas e ouro – as mulheres, à leitura da sorte.

Sinti
Os sinti ou manouch também reconhecem uma origem na Índia e praticam o nomadismo. Eles falam a língua sintó e são encontrados principalmente na Alsácia, entre outras regiões da França, na Alemanha e na Itália. Há poucos deles no Brasil, chegados também no século 19.

Romnichal
O grupo mais numeroso na Grã-Bretanha, encontrado nos Estados Unidos e na Austrália, é chamado também de rom’nie. Sua história remonta ao século 16, quando teriam chegado à Inglaterra. Foram expulsos e perseguidos no país ao longo dos séculos, mas ainda são numerosos lá.


JK era cigano
Bisavô do presidente brasileiro chegou aqui no século 19
A história dos ciganos no Brasil se confunde com o início de nossa colonização. Segundo o geógrafo Rodrigo Teixeira Corrêa, autor de História dos Ciganos no Brasil, o primeiro registro é de 1574, quando o comerciante João Torres, sua mulher e seus filhos foram expulsos de Portugal para cá. A maioria dos que aqui chegaram veio da península Ibérica, mas os que imigraram mais recentemente, no século passado, vêm da Europa Oriental. No século 16, os ciganos degredados se instalaram principalmente na Bahia. O comércio é a principal atividade ligada a eles até hoje. Há registros, do século 18, da presença de comunidades nômades em Minas Gerais – mas apenas dão conta de problemas em que eles se envolviam, como roubos e brigas. Em Minas, mais precisamente em Diamantina, viveu a família do mais ilustre descendente de cigano do país. O primeiro cigano não-ibérico a aportar no Brasil foi Jan Nepomuscky Kubitschek, no século 19. Reconheceu o sobrenome? Seu bisneto, Juscelino, assumiu a presidência do país em 1956.

Vários ciganos, como ele, deixaram a vida nômade, mas há milhares que ainda vivem dessa forma nos grandes centros urbanos. Há entre eles artistas circenses e comerciantes – e, claro, mulheres que lêem a sorte. Não há fontes seguras nem censo sobre o número de ciganos no Brasil – acredita-se que haja cerca de 600 mil. Assim como em outros países do mundo, o principal problema da comunidade é a documentação. Aqueles que não possuem endereço fixo têm problemas para conseguir acesso a serviços públicos. “Não possuir documento é uma opção deles”, diz a antropóloga Florencia Ferrari. “A questão fascinante é como e por que eles escolhem viver assim.”


Costumes próprios
Grupos evitaram casamentos com não-ciganos na tentiva de preservar a cultura
Por causa do convívio com os gadjikane (“não-ciganos”), os ciganos mantiveram determinados costumes para não se “contaminar” pela cultura externa. Evitaram durante séculos, por exemplo, casamentos com não-ciganos. Alguns deles só falam romani. “Para se referir a um não-cigano, há ciganos no país que o tratam por ‘brasileiro’. Isso reforça a idéia de que eles são supranacionais”, diz a antropóloga Florencia Ferrari. Outra característica é que eles também evitaram freqüentar escolas. Segundo a pesquisadora Isabel Fonseca, cerca de três quartos das mulheres ciganas são analfabetas. Isso se mostra na própria língua romani, que não tem forma escrita. Nela, não existem palavras específicas para “escrever” e “ler”. Em seu lugar, são usadas palavras da língua local, onde quer que o grupo se encontre, ou adaptações. A palavra gin, que significa “contar”, faz as vezes de “ler”. Outro costume cigano é as mulheres lerem a sorte, além de usarem saias longas – mostrar os joelhos é um tabu para elas, assim como cortar as unhas. A segregação dos sexos também é um hábito. Homens e mulheres, por exemplo, não comem juntos. As comunidades ciganas valorizam os ritos, como casamento e funeral. Os casamentos são resultado de combinações entre famílias. Os noivos se casam muito jovens. Aos 10 anos ou menos, logo após a primeira menstruação, as meninas já estão aptas a contrair matrimônio. Além disso, a religião não ocupa lugar privilegiado na vida dos ciganos. Há comunidades que ainda preservam algumas características do shaktismo, uma corrente do hinduísmo. Alguns símbolos da antiga religião são identificados pelos gadjikane com a maior parte dos ciganos, como o tridente, arma utilizada pelo deus hindu Shiva. A palavra para tridente, em romani, é a mesma que alguns ciganos cristãos utilizam para cruz. Portanto, o que houve na maioria dos casos foi a assimilação das religiões por onde as correntes migratórias passaram. Na Europa e nas Américas, o cristianismo é a principal fé. Já no Oriente Médio e nos Bálcãs, há ciganos muçulmanos.

Saiba maisLivros

Enterrem-me em Pé – A Longa Viagem dos Ciganos, Isabel Fonseca, Companhia das Letras, 1996.

A autora se embrenhou entre grupos de várias partes do mundo para descrever sua cultura e sua história.

História dos Ciganos no Brasil, Rodrigo Corrêa Teixeira, Núcleo de Estudos Ciganos, Recife, 1999

O autor apresenta a trajetória dos ciganos ibéricos e não-ibéricos no país.

Palavra Cigana – Seis Contos Nômades, Florencia Ferrari, Cosac Naify, 2005

A antropóloga reúne aqui contos da tradição oral de comunidades ciganas do mundo todo.

Revista Aventuras na Historia

Antonio Conselheiro: um abolicionista da plebe



Antonio Conselheiro: um abolicionista da plebe

Clóvis Moura

O movimento camponês de Canudos, no interior da Bahia, durante o governo de Prudente de Morais, infelizmente ainda não foi estudado em todas as suas diversas vertentes e devida profundidade. A obra de Euclides da Cunha Os sertões tornou-se um clássico literário e aqueles que procuram analisar e interpretar esse acontecimento histórico quase sempre partem de suas informações. Uma pesquisa sistemática e exaustiva, por isto mesmo, ainda não foi feita com a profundidade que o tema merece. Um dos defeitos mais visíveis é ignorar-se a importância de Antônio Vicente Mendes Maciel (O Conselheiro) como líder, agitador e organizador. Ele é sempre visto como um místico, messiânico, quando não um desequilibrado mental. O seu crânio, após a sua degola, foi enviado a Salvador, para estudos médico-legais e antropológicos por cientistas influenciados pela Escola de Lombroso, para serem procurados nele os estigmas do ‘criminoso nato’ (1).

Até hoje, por outro lado, não possui um biógrafo que o estudasse por meio de pesquisas modernas e de uma metodologia satisfatória. O livro de Edmundo Moniz, no particular, que vai nessa direção, ressente-se de falhas teóricas muito acentuadas (2). O certo é que a figura de Antônio Conselheiro é sempre apresentada como se fosse a de uma individualidade mórbida, desligada do contexto social do qual surgiu e sem nenhuma ligação funcional e dinâmica com os problemas e as contradições emergentes da região em que a luta eclodiu.

Por essas razões, poucas vezes é lembrado como abolicionista e pregador para a massa escrava. Mas, esse personagem, que percorreu a partir de 1874 grande parte do território cuja população escrava era considerável, não podia deixar de interessar-se pelos cativos, muitos deles egressos dos quilombos da região ou com a revolta latente em face das condições em que viviam.

Em primeiro lugar, devemos ver as suas raízes étnicas, pois quase todos os que dele se ocuparam afirmam ter sido branco. No entanto, no seu batistério ele é registrado como pardo. Vejamos:

Aos vinte e dois de maio de mil oitocentos e trinta batizei e pus os Santos Óleos nesta Matriz de Quixeramobim ao párvulo Antônio pardo nascido aos treze de março do mesmo ano, filho natural de Maria Joaquina: foram padrinhos, Gonçalo Nunes Leitão e Maria Francisca de Paula. Do que, para constar, fiz este termo em que me assinei. O Vigário Domingos Álvaro Vieira. (3)

Como podemos ver, pela sua certidão de batismo, foi considerado pardo pelo padre que o batizou. Se isto, porém, não é de grande significado para avaliar o seu abolicionismo, serve para repor a verdade. O que é importante é apurar-se se na sua biografia pode se constatar uma postura abolicionista nas suas pregações e mais especialmente se essas prédicas foram dirigidas aos próprios escravos.

Quem toma como fonte de informações de sua vida o texto de Os Sertões de Euclides da Cunha certamente nada encontrará. O seu racismo no particular é evidente pois, como acentua muito bem o professor José Calasans, apoiado em livro que Pedro A. Pinto organizou sobre o vocabulário do livro, as palavras escravo e escravidão não se encontram ali uma vez sequer (4) .

Outras fontes, porém, revelam um Antônio Conselheiro preocupado com a escravidão e a sorte dos cativos, dirigindo-se aos próprios escravos, os quais posteriormente irão engrossar as suas hostes. Ainda o professor Calasans escreve que o jornalista Manoel Benício, correspondente do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, junto às forças em operações contra os jagunços, autor de um bom livro relativo à vida dos conselheiristas e de seu guia, percebeu e registrou a posição adotada pelo "Bom Jesus" em face do problema da escravidão:

"Ignorante e enraizado nos velhos hábitos da administração de então, desconfiado como são todos os sertanejos" escreveu Manuel Benício, "de índole conservadora por nascença, achava que toda reforma na administração e toda inovação na economia política eram um meio de se roubar o povo. Fora contra a introdução do sistema métrico-decimal no comércio e a única reforma que encontrou sua aquiescência mais tarde, em 1888, foi a abolição dos escravos. Talvez porque grande porção de quilombos e mucambeiros acautelassem sua errante cruzada."



Para José Calasans, ele "transmitiu aos escravos os ensinamentos dos Evangelhos. Não estando formulando uma hipótese", prossegue:

Baseamos nossa assertiva num depoimento contemporâneo, perdido nas folhas de uma gazeta baiana de 1897, no auge da luta fratricida. Um italiano, que trabalhava na construção da estrada de ferro Salvador-Timbó, narrou, nesses termos, seu encontro com o peregrino: "Veja como este povo", disse-lhe o Conselheiro apontando a gente que aguardava a sua pregação, "na sua totalidade escrava vive pobre e miserável. Veja como ele vem de quatro e mais léguas para ouvir a palavra de Deus. Sem alimentar-se, sem saber como se alimentará amanhã, ele nunca deixa de atrair pressuroso às palavras religiosas, que, indigno servo de Deus e por ele amaldiçoado, iniciei neste local para a redenção dos meus pecados". No lugarejo mencionado, que outro não era senão Saco, entre Timbó e Vila do Conde, na então província da Bahia, durante o dia quase não havia viva alma. Mais de duas mil pessoas, porém, surgiram de noite, ansiosas para ouvirem os conselhos do Bom Jesus. "Ao anoitecer", prosseguiu o empreiteiro, "começavam a chegar e às 8 horas a praça estava cheia, tendo mais de mil pessoas, todas escravas, e após o sermão, que em seguida um explicava ao outro, visto que somente os vizinhos podiam ouví-lo, todos cantavam as seguintes estrofes: Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo, ao que as mulheres e meninos respondiam para sempre seja louvado o santo nome de Maria, e isto até a meia noite, algumas vezes. De manhã não havia pessoa alguma no arraial".

A informação transcrita, documenta, com segurança, as relações do Conselheiro com os escravos da zona citada, que atentamente escutavam a pregação do ‘santo’ de Quixeramobim. Convém esclarescer, desde logo, que na região de Itapicuru, onde Antônio Conselheiro passou grande parte de sua vida de pregador, havia, na época aqui estudada, apreciável número de pequenos engenhos, o que explica a presença de grande quantidade de escravos. Os cativos necessitavam da palavra de conforto e de ajuda do bondoso peregrino, que conforme escreveu o informante acima citado, distribuía apreciáveis quantias às famílias pobres, naturalmente obtidas nas casas dos mais ricos, daqueles senhores de engenhos e negociantes mais generosos. (5).



Convém notar que, na zona de Itapicuru, existiu um quilombo que durante muito tempo deu trabalho às autoridades e do qual certamente Antônio Conselheiro ouvira falar, assim como na região de Tucano, um dos locais que forneceu grande número de adeptos ao Conselheiro. José Calasans, cujo notável trabalho estamos acompanhando, escreve ainda que

Outros elementos poderão ser apresentados no mesmo sentido, isto é, comprobatório do papel desempenhado pelo Conselheiro, junto à população escrava no Nordeste baiano, que ele mais de perto conheceu e assistiu. Num interessante artigo publicado no Jornal de Notícias, da Bahia, edição de 5 de março de 1897, o doutor Cícero Dantas, barão de Geremoabo, proprietário no município de Itapicuru, e prestigioso chefe político, contou que com a abolição da escravatura aumentara o número de acompanhantes do ‘Bom Jesus Conselheiro’. "O povo em massa", declarou Geremoabo, "abandonava suas casas e seus afazeres para acompanhá-lo. Com a abolição do elemento servil ainda mais se faziam sentir os efeitos da propaganda pela falta de braços livre no trabalho. A população vivia como que em delírio ou êxtase e tudo quanto fosse útil ao inculcado enviado de Deus facilmente não prestava. (...) Assim foi escasseando o trabalho agrícola e é atualmente com dificuldade que uma ou outra propriedade funciona, embora sem precisa regularidade". (6)



O mesmo autor, refutando as razões do barão de Geremoabo, afirma que talvez esse chefe conservador tivesse confundido a causa com o efeito, pois não teria sido

Antônio Vicente quem afastou das propriedades agrícolas os negros libertados pela Lei de 1888. O Santo Conselheiro outra coisa não teria feito senão recebê-los e, possivelmente, ampará-los, quando eles próprios, sequiosos de desfrutarem a liberdade alcançada, fugiram dos antigos locais de cativeiro. (...) Não foram poucos os ex-escravos recebidos na comunidade conselheirista. Antonio de Cerqueira Galo, morador em Tucano, localidade baiana donde saíram inúmeros seguidores do Conselheiro, numa carta enviada ao barão de Geremoabo, dando notícias dos habitantes de Canudos, destacou que o contingente de ex-escravos formava a maioria. "Lá os vultos que estão disinvolvendo (sic) a revolta" escreveu o missivista, "é o mesmo Conselheiro com os seus sequazes d’entre estes soldados e desertores de diversos Estados e o povo 13 de maio que é a maior parte." (7)



O depoimento altamente esclarecedor de José Calasans, descobrindo novas fontes de informações que recolocam não apenas o pensamento, mas também, a ação de Antônio Conselheiro em relação ao sistema escravista e suas contradições estruturais, é plenamente corroborado pelas próprias palavras do líder de Canudos no manuscrito que sobreviveu à chacina (sabemos que ele redigiu ou ditou outros que certamente foram destruídos) intitulado Prédicas aos canudenses e um discurso sobre a República (8).

A obra foi encontrada em uma velha caixa, no santuário, por João Pondé, médico baiano que se encontrava na expedição. Afrânio Peixoto recebeu-o de quem o encontrou e fez a doação do mesmo a Euclides da Cunha cuja reação sobre o seu texto ninguém sabe. O certo é que o subestimou, pois refere-se a outros manuscritos encontrados nos escombros, mas silencia sobre este (9).

Dizia Antônio Vicente Mendes Maciel nesse manuscrito, referindo-se à escravidão e à abolição do trabalho escravo:

É preciso, porém, que não deixe no silêncio a origem do ódio que tendes à família imperial, porque sua alteza a senhora Dona Isabel libertou a escravidão, que não fez mais do que cumprir a ordem do céu; porque era chegado o tempo marcado por Deus para libertar esse povo de semelhante estado, o mais degradante a que podia ser reduzido o ser humano; a força moral (que tanto a orna), com que ela procedeu à satisfação da vontade divina, constitui a confiança que tem em Deus para libertar esse povo, (mas) não era suficiente para soar o brado da indignação que arrancou o ódio da maior parte daqueles a quem o povo estava sujeito. Mas os homens não penetram a inspiração divina que moveu o coração da digna e virtuosa princesa para dar semelhante passo; não obstante ela dispor do seu poder, todavia era de supor que meditaria, antes de o pôr em execução, acerca da perseguição que havia de sofrer, tanto assim que na noite que tinha de assinar o decreto da liberdade, um ministro lhe disse: Sua Alteza assina o decreto da liberdade, olhe a República como ameaça; ao que ela não ligou a mínima importância, assinando o decreto com aquela disposição que tanto a caracteriza. A sua disposição, porém, é prova que atesta do modo mais significativo que era a vontade de Deus que libertasse esse povo. Os homens ficaram assombrados com o belo acontecimento, porque já sentiam o braço que sustentava o seu tesouro, correspondendo com a ingratidão e a irresponsabilidade ao trabalho que desse povo recebiam. Quantos morriam debaixo dos açoites por algumas faltas que cometiam; alguns quase nus, oprimidos da fome e de pesado trabalho. E que direi eu daqueles que não levavam com paciência tanta crueldade e no furor do excesso de sua infeliz estrela se matavam? Chegou enfim o dia em que Deus tinha de pôr termo a tanta crueldade, movido de compaixão a favor do seu povo e ordena para que se liberte de tão penosa escravidão. (10) .



Pelo exposto, podemos concluir que Antônio Conselheiro não foi aquele personagem bronco ou louco como se costuma afirmar nos ensaios tradicionais sobre Canudos, mas um agente de dinamização social no período que vai da escravidão e posteriormente de 13 de maio até a luta e a destruição do arraial de Belo Monte. Na primeira fase, reunia os escravos e com eles falava mediante um código de linguagem ligado à simbologia religiosa para denunciar a sua situação e sugerir a necessidade de se libertarem, com isto atraindo, numa região de pequena densidade demográfica na época, cerca de dois mil escravos para ouvirem suas prédicas, segundo testemunha da época.

Em 1897, escreve em um dos seus muitos manuscritos a aprovação que deu à abolição e procura explicar, a seu modo, porque a princesa Isabel estava apoiada nas forças divinas ao assinar a Lei de 13 de Maio, defendendo a necessidade de se acabar com a escravidão que para ele era uma situação que chegava aos limites da degradação humana.

Finalmente, quando os ex-escravos fugiam das terras que simbolizavam para eles a escravidão, Antônio Conselheiro abre-lhes um espaço físico, social e humano no qual eles se integraram, participando ativamente como agentes históricos da comunidade de Canudos até o seu final. Fizeram parte de seu componente militar, religioso e político. Lutaram juntamente com o líder que os reintegrou na sua condição humana. E, antes, quando eram ainda escravos, acenava-lhes com a possibilidade da liberdade, com eles reunindo-se e esclarecendo a possibilidade de mudança social capaz de libertá-los, palavra que era transmitida de boca em boca.

Queremos crer, por tudo isto, que Antônio Conselheiro foi um abolicionista plebeu, atuando na área rural do Nordeste, em uma região em que os líderes tradicionais do abolicionismo nunca atuaram dinamicamente, com uma mensagem dirigida às populações oprimidas e à massa dos escravos descontentes, muitos dos quais, possivelmente, saíam dos quilombos para ouvi-lo.

Notas
1. Quem fez o exame craniométrico de Antônio Conselheiro foram os médicos Nina Rodrigues e Sá de Oliveira, tendo escrito o primeiro que "o crânio de Antônio Conselheiro não apresentava nenhuma anomalia que denunciasse traços de degenerescência: é um crânio de mestiço, onde se associam caracteres antropológicos de raças diferentes". Apesar desta conclusão, Nina Rodrigues não teve dúvidas de escrever que "em Canudos representa de elemento passivo o jagunço que corrigindo a loucura mística de Antônio Conselheiro e dando-lhe umas tinturas das questões políticas e sociais do momento, criou, tornou plausível e deu objeto ao conteúdo do delírio, tornando-o capaz de fazer vibrar a nota étnica dos instintos guerreiros, atávicos, mal extintos ou apenas sofreados no meio social híbrido dos nossos sertões de que o louco como os contagionados são fiéis e legítimas criações. Alí se chocavam de fato, admiravelmente realizadas, todas as condições para uma constituição epidêmica da loucura". Ver RODRIGUES, Nina. As coletividades anormais. São Paulo: Civilização Brasileira, 1939. p.42.

2. MUNIZ, Edmundo. Canudos: a guerra social. Rio de Janeiro: Elo, 1987.

3. Citado por MACEDO, N. Antônio Conselheiro: a morte em vida do beato de Canudos. Rio de Janeiro: Record, 1969. p.42.

4. Ver PINTO, P. A. Os Sertões de Euclides da Cunha: vocabulário e notas lexográficas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930. Para se ter uma posição revisionada do pensamento de Euclides da Cunha em relação à escravidão, ao negro e ao Abolicionismo, veja-se MOURA, Clóvis. Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s. d. p.67-94.

5. CALASANS, J. Antônio Conselheiro e a escravidão. Salvador: s. n., s. d.

6. Idem, ibid.

7. Idem, ibid.

8. CONSELHEIRO, Antônio. Prédicas aos canudenses e um discurso sobre a República. Belo Monte (província da Bahia), 12 jan. 1897 apud NOGUEIRA, A. Antônio Conselheiro e Canudos. São Paulo: Editora Nacional, 1974.

9. Cf. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1933. p.171. Euclides da Cunha refere-se a outros manuscritos encontrados nos escombros, escrevendo ao dar a fonte da transcrição de algumas profecias de Antônio Conselheiro: "Os dizeres dessa profecia estavam escritos em grande número de pequenos cadernos encontrados em Canudos. Os que aí vão, foram, lá mesmo, copiados de um deles pertencente ao secretário do comandante em chefe da campanha".

10. Antônio Conselheiro, apud CUNHA, E., op. cit., p.47.

Clóvis Moura é sociólogo e escritor, professor examinador de pós-graduação da Universidade de São Paulo, autor de vários livros entre eles Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha.

Revista Olho da Historia

Do registro à sedução: os primeiros tempos da fotografia na publicidade brasileira

A fotografia e o Art Nouveau em anúncio dos cigarros Fon-Fon. Revista A Lua, jan. 1910.
Ilustração Art Nouveau em anúncio d'A Saúde da Mulher. Revista A Cigarra, 1º jan. 1924.
Testemunhal com o ator Ramon Navarro para a brilhantina Stacomb. Revista A Cigarra, 15 out. 1929.Anúncios dos alimentos Allenburys: com foto, na revista A Vida Moderna, 14 mai. 1914.Anúncios dos alimentos Allenburys: com ilustração, na revista A Cigarra, 1º jan. 1924Anúncio do sabão Aristolino. Revista A Cigarra, 15 fev. 1922.
Anúncio do concerto da violinista Josephina Robledo. Revista A Cigarra, 26 jul. 1917.
Anúncio do Mel Jatahy Doria. Revista A Cigarra, 10 ago. 1917.Fachadas de lojas: página de anúncios da revista A Lua, fev. 1910.Produto: anúncio da "massa glutinada" Secchi. Revista A Lua, mar. 1910.
Do registro à sedução:
os primeiros tempos da fotografia na publicidade brasileira

Daniela PalmaFotografia e publicidade. Há algum tempo, essa dupla parece indissociável, já que a fotografia transformou-se em elemento essencial aos anúncios publicitários que estampam jornais, revistas e cartazes. Afinal, que outra linguagem, que não a fotográfica, nos meios impressos, consegue conjugar com tanta eficácia, do ponto de vista de uma recepção de massa, credibilidade e sedução?

No entanto, essa parceira não foi amor à primeira vista. A propaganda demorou a aceitar a fotografia em sua seara. A impressão direta de fotografia era possível desde 1880, quando apareceu o processo de impressão por meio-tom (halftone). Mas, a utilização da fotografia pela publicidade não aconteceu na seqüência. No século XIX, o uso de fotografias na imprensa ainda era muito esporádico, evidenciando que a imagem fotográfica não havia sido assimilada pelas estruturas de funcionamento e circulação jornalística e publicitária.

A recusa à fotografia pelos publicitários se dava nas duas pontas: se por um lado, ela era técnica demais para alcançar a fruição artística do desenho, por outro, não tinha a precisão do traço para a reprodução dos detalhes técnicos na impressão, já que as imagens ficavam ainda muito reticuladas. Assim, o uso da fotografia na propaganda do século XIX foi bastante irrisório, tanto na Europa e Estados Unidos, como também no Brasil. Basicamente, a imagem fotográfica continuava a servir, na publicidade e na cobertura jornalística, à mesma finalidade de antes do desenvolvimento do meio-tom, ou seja, como referência para a produção de gravuras.[*1]

No caso brasileiro, aliás, nem podemos falar exatamente num trabalho publicitário mais especializado, já que os primeiros escritórios dedicados a “distribuir anúncios para os jornais”, começaram a surgir a partir de, aproximadamente, 1914, com a casa paulistana Castaldi & Bennaton (que posteriormente se transformaria em A Eclética). Antes disso, as atividades publicitárias estavam ligadas aos próprios jornais e revistas, funções que iam do agenciador de anúncios até escritores e artistas, que geralmente já faziam parte do quadro de colaboradores dos veículos.[*2]

Assim, as novidades técnicas e as soluções para o emprego de novas linguagens seguiam as transformações editoriais no campo jornalístico e, muitas vezes, a passos mais curtos. Por isso, até a década de 1920, é fácil reconhecermos uma identidade gráfica entre os anúncios publicitários e as páginas que traziam o conteúdo editorial. Notamos, assim, tipos de publicidade identificados com os veículos. Uma revista como a paulistana A Lua, de 1910, que tinha uma edição de arte criativa e farto uso de recursos gráficos, trazia uma publicidade idem, com a utilização freqüente de fotografias, composições variadas e ilustrações competentes. O mensário literário Panoplia (1917-1919), editado por Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida entre outros, apresentava um elegante e equilibrada direção artística assinada por Di Cavalcanti, com o uso restrito de imagens e boa impressão. Nesse casso, os anúncios publicitários eram sóbrios e discretos, com eventuais ilustrações a traço, geralmente, desenhos das fachadas dos estabelecimentos comerciais. Se tomarmos, ainda os grandes jornais das primeiras décadas do século XX, observamos uma publicidade pouco inventiva e que não se arriscava a empregar recursos visuais que poderiam ser comprometidos pela baixa qualidade de impressão dos diários.

Nas décadas de 1890 e 1900, o principal modelo estético da grande publicidade no mundo ocidental era o Art Nouveau. Grandes artistas desse estilo, como o tcheco Alphonse Mucha, criaram o referencial de maior sofisticação para a propaganda da Belle Époque. O Art Nouveau, definido por Argan como “um estilo ornamental que consiste no acréscimo de um elemento hedonista a um objeto útil”,[*3] respondia ao anseio publicitário de uma época industrial preocupada em justificar a mais-valia, agregando o valor “criativo” através da ornamentação.

Assim, cartazes, embalagens de produtos, folhetos e os anúncios, publicados nas páginas das cada vez mais requintadas revistas ilustradas, apresentavam os produtos mergulhados entre sedutoras figuras femininas envoltas por suas longas cabeleiras esvoaçantes, tecidos drapeados e ornamentos em forma de flores, mosaicos, pássaros, estrelas e uma infinidade de curvas. A imagem fotográfica, nesse contexto, parecia despojada demais, pouco “criativa” com seu automatismo e nada “artística” para se sobrepor a ilustração a traço. Os fotógrafos pictorialistas,[*4] que buscavam dar um verniz de arte acadêmica à fotografia, mantiveram-se longe da publicidade com receio de vulgarizar o estilo. Os publicitários também estavam naquele momento muito mais empolgados com as curvas da corrente modernista, do que com o classicismo das fotografias pictóricas.

Nesse período, quando os propagandistas recorriam à fotografia, eram muito comuns as colagens de imagens fotográficas recortadas em meio a cenários ou molduras ornamentais. Esses anúncios iam dos mais sofisticados que chegavam a utilizar impressão em cores, até os mais simples com singelas referências visuais ao estilo modernista. Realizavam, assim, a união simbólica da modernidade técnica representada pela fotografia com o refinamento artístico atualizado do Art Nouveau.

Aliás, vale a pena ressaltar, os serviços dos grandes artistas não estavam acessíveis a todo tipo de anunciante. No Brasil, a situação era ainda um pouco mais drástica, pois havia muita desconfiança com relação à publicidade. Alguns relatos dão conta de uma inscrição comum nas entradas dos estabelecimentos: “Essa firma não dá esmolas, nem anúncios”. E, se nem sequer existiam profissionais especializados em publicidade, como convencer capitalistas de primeira viagem a investirem quantias mais altas em uma produção de apelo mais “artístico”. Com isso, havia o acúmulo de funções dos encarregados pelos anúncios: ilustrador, fotógrafo, litógrafo, pintor etc. Desta forma, a maior parte da publicidade que circulava pela imprensa brasileira, trabalhava com composições muito simples, uma ilustração a nanquim acima ou ao lado do texto e, às vezes, uma moldura ou uma vinheta ornamental delimitando esse conjunto. Gradualmente, conforme se adentrava no século XX, as ilustrações foram sendo substituídas por fotografias.

Apesar da imagem fotográfica ter ganhado um pequeno espaço na publicidade, na virada do século, tinha um caráter meramente ilustrativo e um padrão de qualidade, muito desigual. O primeiro gênero fotográfico a ser incorporado de maneira mais sistemática à propaganda foi o retrato. Na chamada publicidade testemunhal, que consistia na utilização da imagem de uma personalidade para recomendar o uso do produto. Raúl Éguizabal ressalta que “os escassos exemplos fotográficos na publicidade norte-americana, durante os primeiros anos do século XX, continuavam a seguir as regras da estética mais ortodoxa, quando não da vulgaridade”.[*5]

No Brasil, também observamos o retrato como gênero mais recorrente de fotografia na publicidade das primeiras décadas do século XX. As imagens para os testemunhais seguiam o padrão dos retratos particulares praticado desde meados do século XIX nos ateliês espalhados pelos grandes centros urbanos. As poses rígidas faziam parte de um repertório que vinha sendo constituído por retratistas desde os primeiros portraits na pintura a óleo. Assim, os retratos não eram pensados em termos de uma linguagem publicitária mais articulada. Nos casos mais cuidados, esses retratos eram realizados por retratistas experientes, com acuidade técnica, em estúdios modernos, mas funcionavam como os retratos avulsos, daqueles que eram realizados para circulação no âmbito privado. Existiam também os instantâneos[*6] realizados muitas vezes por um faz-tudo da redação para a área gráfica. Então, o que observamos nesse primeiro período de assimilação da fotografia pela publicidade foi a inserção do retrato, objeto de uso particular, num contexto de circulação de massa.

Há um exemplo que localizamos de um anúncio de uma marca inglesa de alimentos, Allenburys, num número da revista A Vida Moderna de 1914, com o retrato bem realizado de uma mulher alimentando um bebê (por se tratar de um produto importado é possível que a fotografia não tenha sido produzida no Brasil). Dez anos mais tarde, foi veiculado um anúncio do mesmo produto em alguns números da revista A Cigarra. Nesse caso, no lugar da foto, foi utilizada uma ilustração produzida a partir da fotografia. Esse caso é curioso de substituição de uma fotografia por ilustração de qualidade inferior. É provável que a explicação tenha a ver com algum problema operacional (perdeu-se ou ficou-se sem acesso à cópia fotográfica e ao clichê do primeiro anúncio etc.), mas o que chama atenção é que a prática de usar imagens fotográficas como referência para ilustrações a traço era ainda muito comum e aceita nos meios gráficos brasileiros da década de 1920.

Havia algumas tentativas de produzir retratos com mais movimento. O sabão Aristolino veiculou vários anúncios na revista A Cigarra entre, pelo menos, 1922 e 1924 usando fotos de coristas e moças em trajes de praia, com composições que fugiam do esquema tradicional dos retratos. Há também um uso interessante da fotografia em anúncios do licor Vermutin veiculado em 1917, também na revista A Cigarra. Nesse caso, os retratos de uma modelo interpretando personagens em poses que exploram a noção da força e vitalidade criam um identidade de proposta entre os anúncios, aproximando-se da idéia de uma campanha. Na mesma revista, um concerto de Josephina Robledo foi anunciado com criatividade, usando um retrato da violonista espanhola tocando montado em uma moldura circular formada por imagens das mãos da moça. O curioso anúncio do xarope Mel Jatahy Doria, de 1917, faz referência às sufragistas – “ Suffragistas... Todas estas moças não confundiram o xarope” – e utiliza uma montagem com diversos retratos de mulheres recortados compondo uma “multidão” feminina de fundo.

Além dos retratos, encontramos na publicidade veiculada nas revistas das primeiras décadas do século XX, imagens de estabelecimentos comerciais e, mais esporadicamente, de produtos. Estas fotografias podem parecer, aos nossos olhares saturados pela publicidade moderna, bastante ingênuas. O que ocorre é que essas imagens mostram claramente uma preocupação em apenas mostrar o que estava sendo anunciado. Era a tentativa de empregar a fotografia como registro, como documento que certifica ao público a aparência mais genérica, sem o intuito predefinido de destacar um ou mais aspectos dos produtos. Sem as técnicas e truques para embelezar objetos e espaços que viriam a constituir futuramente uma sintaxe da imagem publicitária moderna.[*7]

O domínio absoluto da ilustração a traço na publicidade brasileira de alta qualidade deu-se, pelo menos, até a década de 1930, época em que a agências estrangeiras começaram a chegar ao país, principalmente em São Paulo.[*8] Segundo Chico Albuquerque, até este momento, a fotografia publicitária era “limitada a fotos de objetos e produtos”.[*9] Ainda assim, até a década de 1940, para se utilizar fotografias principalmente de objetos e de ambientes industriais, era imperativo o uso do retoque americano.[*10] Os fotógrafos que recebiam as encomendas da área publicitária atuavam em vários campos, não havia a especialização. As agências estrangeiras, a princípio, quando intencionavam utilizar fotografias, recorriam a imagens compradas nos Estados Unidos, com modelos norte-americanas. Ricardo Ramos narra, inclusive, um caso anedótico a esse respeito, acontecido nos anos 1930:

Em São Paulo, nos começos da Ayer, somente se usava desenho como ilustração de anúncio. Cansado de arte a traço, Charles Dulley passou a comprar fotos em Nova York. Na maioria, os modelos das fotografias que vinham eram mulheres bonitas, sem dúvida, mas quase todas louras. E havia uma necessidade óbvia de morenas. Então foi posto um anúncio no Estado, em sua nascente página de classificados. “Jovens bonitas, morenas, para trabalho fácil e bem pago.” Dia seguinte, dois “secretas” visitaram a agência: queriam saber qual era aquele trabalho fácil.[*11]

O incremento do uso da fotografia na propaganda brasileira é creditada à Thompson. Segundo Fernando Reis, o primeiro fotógrafo que passou a prestar serviços à agência foi Henrique Becherini, que é apontado por Albuquerque, como também por Hans Gunter Flieg, como um dos primeiros a realmente se especializar no campo publicitário.[*12] Becherini produziu fotos para campanhas da Atlantic, da Goodrich, da Blue Star Lines e das Refinações de Milho Brasil. Um dos clientes mais importantes de Becherini foi a General Motors. Na primeira campanha para GM, o fotógrafo produziu uma série de retratos de personalidades brasileiras para compor os anúncios testemunhais. Por esse trabalho, Becherini teria recebido como cachê um automóvel Chevrolet.[*13]

Foi realmente na década de 1940 que começou a haver um espaço um pouco mais consolidado para a fotografia no campo da propaganda, e fotógrafos como Chico Albuquerque, Peter Scheier e Hans Gunter Flieg, além do próprio Becherini e talvez uns poucos mais, firmaram-se na área.[*14] Os anos 1940 marcaram uma mudança profunda no campo da fotografia brasileira. A implementação de estruturas mais complexas no campo da produção cultural exigiu novas posturas dos fotógrafos e propostas mais antenadas ao que já se produzia no exterior. Sem dúvida, influiu neste quadro a chegada de profissionais estrangeiros, já iniciados na modernidade européia, que vinham ao Brasil refugiados do nazismo e da Guerra.

Bibliografia
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
BRANCO, Renato Castelo; MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (orgs.). História da propaganda no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1990.
ÉGUIZABAL, Raúl. Fotografía publicitaria. Madrid: Cátedra, 2001.
LEMAGNY, Jean-Claude; ROUILLÉ, André (orgs.). Histoire de la photographie. Paris: Larousse/Bordas, 1998.
RAMOS, Ricardo. Do reclame à comunicação: pequena história da propaganda no Brasil. São Paulo: Atual, 1985.
SOBIESZEK, Robert. The art of persuasion: a history of advertising photography. New York: Harry N. Abrams, 1988.
Histórica - Arquivo Público do Estado de São Paulo

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

A Sociedade Lunar

A Sociedade Lunar
Na segunda metade do século 18, os maiores cientistas da Inglaterra se juntaram na Sociedade Lunar, fazendo descobertas que deram o pontapé inicial na Revolução Industrial
por Reinaldo José Lopes
Todos os meses, nos domingos de lua cheia, um grupo de amigos costumava se reunir em Birmingham, na Inglaterra, para beber quantidades colossais de vinho e bater papo. Depois do jantar – que acontecia às 2h da tarde, como era comum no século 18 –, os colegas mandavam limpar a mesa e mostravam por que os animados encontros do grupo, conhecido como a Sociedade Lunar, entraram para a história. Entre uma piada e outra, eles manejavam microscópios e aparelhos elétricos, debatiam como construir uma carruagem movida a vapor ou erguer um balão pelos ares. E, como dinheiro nunca fez mal a ninguém, pensavam em enriquecer e compensar o esforço de suas pesquisas. Assim, ajudaram a criar a chamada Revolução Industrial e o mundo no qual todos nós vivemos hoje.

A lista dos “lunáticos” de Birmingham parece uma reunião dos “10 mais” da ciência no século 18. Temos o engenheiro James Watt, que aperfeiçoou as máquinas a vapor; Joseph Priestley, químico descobridor do oxigênio; o médico Erasmus Darwin, avô de Charles e, como o neto, autor de uma revolucionária teoria sobre a evolução dos seres vivos. O lado empresarial era representado por Matthew Boulton e Josiah Wedgwood, dois protótipos de industrial sempre prontos a usar os experimentos dos amigos para criar produtos inovadores. Havia ainda Richard Lovell Edgeworth e Thomas Day, jovens idealistas que queriam usar o avanço da ciência para melhorar a sociedade.

Por um lado, a Sociedade Lunar tem uma cara contemporânea, afinal tinha um faro dos mais apurados para transformar seus achados em lucro, coisa que ainda é um problema para muito cientista por aí. Por outro, o grupo é fruto de uma época em que a ciência (aliás, filosofia natural, já que a palavra “cientista” ainda não existia) era quase uma arte, praticada por amadores talentosos que iam da zoologia para a mecânica sem a menor dificuldade.

Esse bando de cientistas-empreendedores só podia ter se formado mesmo na Inglaterra do século 18, um país que parecia estar voltado para o futuro. Fazia tempo, por exemplo, que o lugar tinha deixado de ser uma monarquia absoluta e caminhava para o parlamentarismo. Brigando com a França pelo controle da Índia e da América do Norte, os ingleses levavam a guerra e o comércio de Sua Majestade aos recantos mais obscuros do planeta. Teóricos como Adam Smith, o pai do liberalismo econômico, falavam em abrir fronteiras e diminuir tarifas como o melhor meio de garantir prosperidade para todos.

O ambiente de grandes avanços e confiança no futuro se refletia também na ciência. O sucesso de Isaac Newton e de sua teoria sobre a gravidade fez da filosofia natural um assunto popular. Todo cavalheiro que se prezasse devia mostrar um certo interesse em relação às novas descobertas. Faziam muito sucesso pequenos shows científicos, como dissecações públicas ou demonstrações dos poderes da eletricidade.

Nesse clima, as Midlands Ocidentais, região da Inglaterra onde ficava Birmingham e lar dos principais membros da Sociedade Lunar, começaram a prosperar como nunca. Darwin, Boulton e Wedgwood descendiam de pequenos proprietários de terra da área, plebeus, mas com algumas posses. Graças às novas necessidades do mercado interno e internacional, Birmingham estava virando um grande centro manufatureiro, produzindo principalmente artigos de metal e cerâmica para os ricos e para a classe média européia. Foi para aproveitar essas oportunidades que Boulton tornou-se “fabricante de brinquedos” (na verdade, o termo se aplicava também à manufatura de uma série de pequenos objetos em metal, como botões e fivelas de cintos e calçados), enquanto Wedgwood seguiu a tradição da família e aprendeu a profissão de oleiro.

Assim como a dupla, boa parte dos empreendedores das Midlands pertencia a seitas protestantes como os quakers, os batistas e os metodistas, que desafiavam a religião oficial da Inglaterra (o anglicanismo) e, por isso mesmo, eram impedidos de ocupar os principais cargos públicos. Conhecidos como não-conformistas ou dissidentes, eles transformaram a discriminação em vantagem ao se tornarem grandes homens de negócios e se dedicarem aos problemas mais avançados da ciência e da filosofia, livres das restrições que o anglicanismo tradicional muitas vezes impunha.

Mais ao norte, as cidades escocesas passavam por um boom parecido com o de Birmingham graças ao comércio fluvial e marítimo, e foi graças a esse processo que as primeiras conexões entre os membros da Sociedade Lunar começaram a ser forjadas. O jovem Erasmus Darwin, filho de um advogado e dono de terras, tinha sido mandado para a Universidade de Cambridge em 1750, para se formar em medicina, mas logo descobriu que a instituição era um bocado antiquada. O melhor jeito de conseguir boa formação era ir a Edimburgo, capital da Escócia, cuja universidade era bem mais aberta às novas teorias – e aceitava alunos e professores não-conformistas.

Erasmus era uma figura: alto, com o rosto marcado por cicatrizes de varíola, falava pelos cotovelos (apesar de gaguejar freneticamente) e já demonstrava certa tendência à obesidade – na idade madura, as mesas onde ele sentava precisavam ter um buraco em semicírculo para acomodar sua avantajada barriga. Como qualquer universitário, vivia atrás de um rabo de saia e enchia a cara nas tavernas de Edimburgo. Mas também se mostrava um aluno brilhante, capaz de absorver modernas teorias sobre o funcionamento do organismo humano e de misturar a paixão pelos experimentos com talento para a poesia.

Depois de formado, Darwin se fixou na pequena e aristocrática cidade de Lichfield, a uns 20 quilômetros de Birmingham. Atendia pacientes por toda a região, sacolejando pelas péssimas estradas em carruagens que ele mesmo tentava aperfeiçoar. Graças a essas jornadas, tornou-se amigo de Boulton, ao cuidar de membros da família da mulher dele, os Robinson, e logo conheceu também Wedgwood. O trio trocava cartas sem parar, discutindo experimentos de todo tipo, principalmente envolvendo química, eletricidade e geração de energia.

Além do interesse científico, Boulton e Wedgwood eram pioneiros na organização de seus negócios. O primeiro resolveu concentrar todas as suas operações na Manufatura Soho, criando uma espécie de bisavó das linhas de montagem (antes, cada etapa do processo de fabricação era feita numa oficina diferente). Já Wedgwood tinha faro de marqueteiro: seduziu a família real com seus vasos de cerâmica fina e conseguiu o direito de ostentar o título de “Oleiro da Rainha” – propaganda melhor, impossível. Para criar produtos melhores e mais ao gosto do público, os dois aproveitavam as descobertas da química e da geologia – foi graças a elas que a caríssima porcelana chinesa conseguiu ser reproduzida por fabricantes europeus.

Nada mais distante de uma ciência exata do que a química praticada pelos “lunáticos” e seus contemporâneos. “Para eles, o que mais importava não era o conhecimento teórico, mas o experimental”, afirma Ursula Klein, do Instituto Max Planck de História da Ciência, na Alemanha. “O equipamento deles não era muito diferente do usado pelos boticários, pelos ourives ou nas destilarias da época.” Para se ter uma idéia, conta-se que o alemão Andreas Sigismund Marggraf conseguiu purificar pela primeira vez o ácido fórmico destilando 24 onças (cerca de 680 gramas) de formigas até verificar a formação de cristais.

Foram esses experimentos que ajudaram a fortalecer as conexões do grupo das Midlands com colegas mais ao norte, como James Watt, um especialista em instrumentos de precisão e químico entusiasta, e Joseph Priestley. O segundo era ao mesmo tempo um mestre do laboratório e um visionário político e religioso. Pastor não-conformista, Priestley dizia que Jesus havia sido apenas um homem de grandes qualidades morais, e defendia que as descobertas da ciência deviam ser acessíveis a todos, para que a sociedade pudesse progredir e as autoridades injustas fossem substituídas por um governo do povo.

Nos anos 1770, Priestley estava às voltas com os gases que escapavam das rochas e minerais, uma das grandes novidades da época. As rochas calcárias, por exemplo, liberavam dióxido de carbono (CO2), e o pastor criou a primeira água mineral com gás da história ao misturar a substância ao líquido. Mas a sua descoberta mais importante veio quando ele aqueceu óxido de mercúrio com a ajuda de uma lupa que concentrava os raios do Sol e conseguiu capturar o gás liberado. Nas suas próprias palavras: “Peguei um camundongo e o coloquei num recipiente de vidro, contendo duas onças do ar das calcinações de mercúrio. Se fosse ar comum, ele teria vivido um quarto de hora. Neste ar, contudo, viveu meia hora”. Priestley tinha descoberto o oxigênio. A publicação de seus resultados fez com que ficasse conhecido pelos membros da Sociedade Lunar. Ele se juntou ao grupo quando se mudou para os arredores de Birmingham em 1780.

Nesse meio-tempo, Watt já se tornara um membro ao virar sócio de Boulton. Fazia uma década que o engenheiro escocês, sujeito talentoso, mas pessimista e completamente hipocondríaco, tentava aperfeiçoar as máquinas a vapor rudimentares da época. Por ora, suas tentativas tinham esbarrado em uma série de problemas técnicos e, para piorar, seu principal financiador, John Roebuck, foi à bancarrota em 1774. Contudo, Watt já tinha o mais importante – uma patente que lhe garantia o pagamento de royalties por qualquer motor que utilizasse os princípios que inventara. Boulton, que já o conhecia, percebeu o potencial daquilo e convenceu o desesperado Watt a se mudar para Birmingham.

Demorou um pouco, mas a parceria fez sucesso. O aparelho aperfeiçoado por Watt consumia menos carvão e era quatro vezes mais potente que o modelo mais comum da época. Como as locomotivas ainda iam levar quase meio século para ser inventadas, a principal utilidade do engenho era drenar água das minas de carvão e cobre, que freqüentemente eram inundadas e ficavam inacessíveis. Watt e Boulton fizeram fortuna vendendo suas engenhocas para a indústria mineira. Sempre marqueteiro, Boulton declarou certa vez a um visitante de sua manufatura: “Eu vendo aqui, meu senhor, o que o mundo inteiro deseja conseguir: poder”.

Tudo parecia caminhar às mil maravilhas. As reuniões, que já aconteciam havia alguns anos, foram semi-oficializadas a partir de 1775, embora fosse raro que todos os membros participassem. “Nos encontros, eles funcionavam como um pequeno grupo de pesquisa de alto nível”, diz a escritora britânica Jenny Uglow, autora de The Lunar Men, (“Os Lunáticos”, inédito em português) uma biografia coletiva da Sociedade Lunar. Além de Priestley, o grupo tinha outros dois teóricos políticos e sociais, Richard Edgeworth e Thomas Day. A dupla se inspirava nas idéias do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, para quem os seres humanos eram naturalmente bons – a sociedade é que os corrompia. Day chegou a colocar esse ideal em prática escrevendo o primeiro livro infantil da Inglaterra e tentando transformar uma órfã na esposa ideal aplicando a educação à la Rousseau.

Daí a apoiar idéias democráticas consideradas radicais era um pulo. Por isso, muitos dos membros festejaram a Revolução Francesa, em 1789, que primeiro restringiu os poderes do rei Luís XVI e depois acabou decapitando o soberano. É claro que o governo inglês não via com bons olhos esse radicalismo, em especial o de Priestley, um dos maiores defensores do governo francês. Por baixo dos panos, as autoridades de Birmingham – em especial o clero anglicano – estimularam ataques de arruaceiros contra a casa do pastor “subversivo” e de outros membros da sociedade, como William Withering, em 1791.

Priestley teve de fugir da cidade e acabou emigrando para os Estados Unidos, independentes desde 1776. Depois de sua partida, os encontros nunca mais foram os mesmos, com os membros cada vez mais preocupados com a situação política (e tentando salvar os próprios pescoços). Na virada do século, os encontros praticamente tinham parado, e a nova geração olhava com desconfiança para os experimentos malucos e idéias radicais dos “lunáticos”. Não que isso importasse muito: nas fábricas, máquinas e objetos do século 19, era clara a marca deixada pela Sociedade Lunar.



Vovô Darwin e a origem das espécies
Avô de Charles tinha suas próprias idéias sobre a evolução
Erasmus Darwin pode não ter descoberto um mecanismo tão claro quanto a seleção natural, como seu neto Charles faria décadas mais tarde, mas o médico fez uma série de observações clarividentes sobre a evolução dos seres vivos. Inspirado por Carl von Linné, o botânico sueco que criou a nomenclatura usada ainda hoje para designar animais e plantas (como o nome duplo Homo sapiens atribuído ao homem), Erasmus se tornou um grande observador dos vegetais. Em seu livro The Loves of Plants (“Os Amores das Plantas”), ele reuniu seus achados numa mistura curiosa de versos shakespearianos e notas em prosa. Nessa obra e nas seguintes, como The Temple of Nature (“O Templo da Natureza”), Darwin destaca a importância do sexo para as formas e o comportamento dos seres vivos, um ponto que seria confirmado pelos futuros biólogos evolutivos. Seus escritos estão cheios de metáforas libidinosas, em que até as plantas vivem encontros amorosos, adultérios e poligamia. E ele cogita que todos os animais descendem de um único ancestral, um “filamento vivo” – outro chute bem-dado que os paleontólogos e geneticistas iriam provar mais tarde. Assim como seu descendente, Erasmus despertou a ira de alguns religiosos com suas idéias. Brincando com fogo, ele pegou o brasão da família Darwin (formado por três conchas) e adicionou a ele o lema em latim E conchis omnia (“tudo deriva das conchas”), como exemplo de sua idéia do ancestral comum. Thomas Seward, o bispo de Lichfield, ficou fulo da vida com a idéia e compôs um ou dois versos satíricos desancando Darwin. Erasmus acabou desistindo do gesto e retirou a frase do escudo da família.

Receita de esposa
Thomas Day acreditava que poderia criar a mulher ideal
O prêmio de radicalismo filosófico certamente é de um dos mais jovens membros da Sociedade Lunar, Thomas Day. Inspirado pelas idéias de Rousseau e decidido a criar para si mesmo a esposa ideal – “com gosto pela literatura e pela ciência” e ao mesmo tempo “simples como uma montanhesa e destemida e intrépida como as mulheres espartanas” –, Day adotou duas garotas, uma morena de 11 anos e uma loura de 12, e passou a criá-las. A que se saísse melhor nos quesitos acima viraria sua companheira. Desnecessário dizer que a idéia foi um fracasso. Decidido a começar do zero na sua tarefa educativa, Day começou rebatizando as ninfetas, dando à lourinha o nome de Lucretia, e à morena, o de Sabrina. Levou a dupla para uma viagem filosófica pela França, mas elas acabaram ficando doentes e, ainda por cima, a brigar pela atenção do filósofo como duas autênticas aborrescentes. Na volta à Inglaterra, Day logo desistiu de Lucretia, que recebeu um dote e se casou com um tecelão. A outra, Sabrina, tinha se tornado uma beldade, segundo os relatos da época, e causou sensação entre os intelectuais das Midlands. Mas a moça não passou nos testes “espartanos” do filósofo. Um deles incluía não gritar quando ele derrubava cera quente nas mãos dela. Em outro, Day fingiu confessar à Sabrina que sua vida estava em grave perigo e que ela não podia contar o fato a ninguém (no dia seguinte, todos os amigos e criados do filósofo já estavam sabendo). No fim, ela acabou se casando com John Bicknell, amigo de seu ex-tutor. Essa não foi a última das excentricidades amorosas de Day. Ao apaixonar-se pela refinada Elizabeth Sneyd, que não queria nem ouvir falar das pataquadas espartanas dele, o filósofo decidiu passar um ano na França aprendendo a última moda da época sobre dança, cortesia e roupas. Não adiantou muito: Elizabeth decidiu que preferia o Day antigo, embora ainda não quisesse se casar com ele. Mais tarde, o filósofo finalmente achou uma companheira, Esther Milnes, que topou seguir seus ideais linha-dura.

Saiba mais
Livro

The Lunar Men, Jenny Uglow, Farrar, Straus and Giroux, 2004 - Uma enciclopédia sobre os “lunáticos” e sua época, acompanhando a trajetória de dezenas de personagens e sua relação com os eventos mais importantes do século 18.

Site

www.erasmusdarwin.org - Para os interessados em conhecer como os “lunáticos” viviam, vale a pena visitar virtualmente as casas de Erasmus Darwin e Matthew Boulton, ainda preservadas em Lichfield e Birmingham

Revista Aventuras na Historia

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