quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

A Sociedade Lunar

A Sociedade Lunar
Na segunda metade do século 18, os maiores cientistas da Inglaterra se juntaram na Sociedade Lunar, fazendo descobertas que deram o pontapé inicial na Revolução Industrial
por Reinaldo José Lopes
Todos os meses, nos domingos de lua cheia, um grupo de amigos costumava se reunir em Birmingham, na Inglaterra, para beber quantidades colossais de vinho e bater papo. Depois do jantar – que acontecia às 2h da tarde, como era comum no século 18 –, os colegas mandavam limpar a mesa e mostravam por que os animados encontros do grupo, conhecido como a Sociedade Lunar, entraram para a história. Entre uma piada e outra, eles manejavam microscópios e aparelhos elétricos, debatiam como construir uma carruagem movida a vapor ou erguer um balão pelos ares. E, como dinheiro nunca fez mal a ninguém, pensavam em enriquecer e compensar o esforço de suas pesquisas. Assim, ajudaram a criar a chamada Revolução Industrial e o mundo no qual todos nós vivemos hoje.

A lista dos “lunáticos” de Birmingham parece uma reunião dos “10 mais” da ciência no século 18. Temos o engenheiro James Watt, que aperfeiçoou as máquinas a vapor; Joseph Priestley, químico descobridor do oxigênio; o médico Erasmus Darwin, avô de Charles e, como o neto, autor de uma revolucionária teoria sobre a evolução dos seres vivos. O lado empresarial era representado por Matthew Boulton e Josiah Wedgwood, dois protótipos de industrial sempre prontos a usar os experimentos dos amigos para criar produtos inovadores. Havia ainda Richard Lovell Edgeworth e Thomas Day, jovens idealistas que queriam usar o avanço da ciência para melhorar a sociedade.

Por um lado, a Sociedade Lunar tem uma cara contemporânea, afinal tinha um faro dos mais apurados para transformar seus achados em lucro, coisa que ainda é um problema para muito cientista por aí. Por outro, o grupo é fruto de uma época em que a ciência (aliás, filosofia natural, já que a palavra “cientista” ainda não existia) era quase uma arte, praticada por amadores talentosos que iam da zoologia para a mecânica sem a menor dificuldade.

Esse bando de cientistas-empreendedores só podia ter se formado mesmo na Inglaterra do século 18, um país que parecia estar voltado para o futuro. Fazia tempo, por exemplo, que o lugar tinha deixado de ser uma monarquia absoluta e caminhava para o parlamentarismo. Brigando com a França pelo controle da Índia e da América do Norte, os ingleses levavam a guerra e o comércio de Sua Majestade aos recantos mais obscuros do planeta. Teóricos como Adam Smith, o pai do liberalismo econômico, falavam em abrir fronteiras e diminuir tarifas como o melhor meio de garantir prosperidade para todos.

O ambiente de grandes avanços e confiança no futuro se refletia também na ciência. O sucesso de Isaac Newton e de sua teoria sobre a gravidade fez da filosofia natural um assunto popular. Todo cavalheiro que se prezasse devia mostrar um certo interesse em relação às novas descobertas. Faziam muito sucesso pequenos shows científicos, como dissecações públicas ou demonstrações dos poderes da eletricidade.

Nesse clima, as Midlands Ocidentais, região da Inglaterra onde ficava Birmingham e lar dos principais membros da Sociedade Lunar, começaram a prosperar como nunca. Darwin, Boulton e Wedgwood descendiam de pequenos proprietários de terra da área, plebeus, mas com algumas posses. Graças às novas necessidades do mercado interno e internacional, Birmingham estava virando um grande centro manufatureiro, produzindo principalmente artigos de metal e cerâmica para os ricos e para a classe média européia. Foi para aproveitar essas oportunidades que Boulton tornou-se “fabricante de brinquedos” (na verdade, o termo se aplicava também à manufatura de uma série de pequenos objetos em metal, como botões e fivelas de cintos e calçados), enquanto Wedgwood seguiu a tradição da família e aprendeu a profissão de oleiro.

Assim como a dupla, boa parte dos empreendedores das Midlands pertencia a seitas protestantes como os quakers, os batistas e os metodistas, que desafiavam a religião oficial da Inglaterra (o anglicanismo) e, por isso mesmo, eram impedidos de ocupar os principais cargos públicos. Conhecidos como não-conformistas ou dissidentes, eles transformaram a discriminação em vantagem ao se tornarem grandes homens de negócios e se dedicarem aos problemas mais avançados da ciência e da filosofia, livres das restrições que o anglicanismo tradicional muitas vezes impunha.

Mais ao norte, as cidades escocesas passavam por um boom parecido com o de Birmingham graças ao comércio fluvial e marítimo, e foi graças a esse processo que as primeiras conexões entre os membros da Sociedade Lunar começaram a ser forjadas. O jovem Erasmus Darwin, filho de um advogado e dono de terras, tinha sido mandado para a Universidade de Cambridge em 1750, para se formar em medicina, mas logo descobriu que a instituição era um bocado antiquada. O melhor jeito de conseguir boa formação era ir a Edimburgo, capital da Escócia, cuja universidade era bem mais aberta às novas teorias – e aceitava alunos e professores não-conformistas.

Erasmus era uma figura: alto, com o rosto marcado por cicatrizes de varíola, falava pelos cotovelos (apesar de gaguejar freneticamente) e já demonstrava certa tendência à obesidade – na idade madura, as mesas onde ele sentava precisavam ter um buraco em semicírculo para acomodar sua avantajada barriga. Como qualquer universitário, vivia atrás de um rabo de saia e enchia a cara nas tavernas de Edimburgo. Mas também se mostrava um aluno brilhante, capaz de absorver modernas teorias sobre o funcionamento do organismo humano e de misturar a paixão pelos experimentos com talento para a poesia.

Depois de formado, Darwin se fixou na pequena e aristocrática cidade de Lichfield, a uns 20 quilômetros de Birmingham. Atendia pacientes por toda a região, sacolejando pelas péssimas estradas em carruagens que ele mesmo tentava aperfeiçoar. Graças a essas jornadas, tornou-se amigo de Boulton, ao cuidar de membros da família da mulher dele, os Robinson, e logo conheceu também Wedgwood. O trio trocava cartas sem parar, discutindo experimentos de todo tipo, principalmente envolvendo química, eletricidade e geração de energia.

Além do interesse científico, Boulton e Wedgwood eram pioneiros na organização de seus negócios. O primeiro resolveu concentrar todas as suas operações na Manufatura Soho, criando uma espécie de bisavó das linhas de montagem (antes, cada etapa do processo de fabricação era feita numa oficina diferente). Já Wedgwood tinha faro de marqueteiro: seduziu a família real com seus vasos de cerâmica fina e conseguiu o direito de ostentar o título de “Oleiro da Rainha” – propaganda melhor, impossível. Para criar produtos melhores e mais ao gosto do público, os dois aproveitavam as descobertas da química e da geologia – foi graças a elas que a caríssima porcelana chinesa conseguiu ser reproduzida por fabricantes europeus.

Nada mais distante de uma ciência exata do que a química praticada pelos “lunáticos” e seus contemporâneos. “Para eles, o que mais importava não era o conhecimento teórico, mas o experimental”, afirma Ursula Klein, do Instituto Max Planck de História da Ciência, na Alemanha. “O equipamento deles não era muito diferente do usado pelos boticários, pelos ourives ou nas destilarias da época.” Para se ter uma idéia, conta-se que o alemão Andreas Sigismund Marggraf conseguiu purificar pela primeira vez o ácido fórmico destilando 24 onças (cerca de 680 gramas) de formigas até verificar a formação de cristais.

Foram esses experimentos que ajudaram a fortalecer as conexões do grupo das Midlands com colegas mais ao norte, como James Watt, um especialista em instrumentos de precisão e químico entusiasta, e Joseph Priestley. O segundo era ao mesmo tempo um mestre do laboratório e um visionário político e religioso. Pastor não-conformista, Priestley dizia que Jesus havia sido apenas um homem de grandes qualidades morais, e defendia que as descobertas da ciência deviam ser acessíveis a todos, para que a sociedade pudesse progredir e as autoridades injustas fossem substituídas por um governo do povo.

Nos anos 1770, Priestley estava às voltas com os gases que escapavam das rochas e minerais, uma das grandes novidades da época. As rochas calcárias, por exemplo, liberavam dióxido de carbono (CO2), e o pastor criou a primeira água mineral com gás da história ao misturar a substância ao líquido. Mas a sua descoberta mais importante veio quando ele aqueceu óxido de mercúrio com a ajuda de uma lupa que concentrava os raios do Sol e conseguiu capturar o gás liberado. Nas suas próprias palavras: “Peguei um camundongo e o coloquei num recipiente de vidro, contendo duas onças do ar das calcinações de mercúrio. Se fosse ar comum, ele teria vivido um quarto de hora. Neste ar, contudo, viveu meia hora”. Priestley tinha descoberto o oxigênio. A publicação de seus resultados fez com que ficasse conhecido pelos membros da Sociedade Lunar. Ele se juntou ao grupo quando se mudou para os arredores de Birmingham em 1780.

Nesse meio-tempo, Watt já se tornara um membro ao virar sócio de Boulton. Fazia uma década que o engenheiro escocês, sujeito talentoso, mas pessimista e completamente hipocondríaco, tentava aperfeiçoar as máquinas a vapor rudimentares da época. Por ora, suas tentativas tinham esbarrado em uma série de problemas técnicos e, para piorar, seu principal financiador, John Roebuck, foi à bancarrota em 1774. Contudo, Watt já tinha o mais importante – uma patente que lhe garantia o pagamento de royalties por qualquer motor que utilizasse os princípios que inventara. Boulton, que já o conhecia, percebeu o potencial daquilo e convenceu o desesperado Watt a se mudar para Birmingham.

Demorou um pouco, mas a parceria fez sucesso. O aparelho aperfeiçoado por Watt consumia menos carvão e era quatro vezes mais potente que o modelo mais comum da época. Como as locomotivas ainda iam levar quase meio século para ser inventadas, a principal utilidade do engenho era drenar água das minas de carvão e cobre, que freqüentemente eram inundadas e ficavam inacessíveis. Watt e Boulton fizeram fortuna vendendo suas engenhocas para a indústria mineira. Sempre marqueteiro, Boulton declarou certa vez a um visitante de sua manufatura: “Eu vendo aqui, meu senhor, o que o mundo inteiro deseja conseguir: poder”.

Tudo parecia caminhar às mil maravilhas. As reuniões, que já aconteciam havia alguns anos, foram semi-oficializadas a partir de 1775, embora fosse raro que todos os membros participassem. “Nos encontros, eles funcionavam como um pequeno grupo de pesquisa de alto nível”, diz a escritora britânica Jenny Uglow, autora de The Lunar Men, (“Os Lunáticos”, inédito em português) uma biografia coletiva da Sociedade Lunar. Além de Priestley, o grupo tinha outros dois teóricos políticos e sociais, Richard Edgeworth e Thomas Day. A dupla se inspirava nas idéias do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, para quem os seres humanos eram naturalmente bons – a sociedade é que os corrompia. Day chegou a colocar esse ideal em prática escrevendo o primeiro livro infantil da Inglaterra e tentando transformar uma órfã na esposa ideal aplicando a educação à la Rousseau.

Daí a apoiar idéias democráticas consideradas radicais era um pulo. Por isso, muitos dos membros festejaram a Revolução Francesa, em 1789, que primeiro restringiu os poderes do rei Luís XVI e depois acabou decapitando o soberano. É claro que o governo inglês não via com bons olhos esse radicalismo, em especial o de Priestley, um dos maiores defensores do governo francês. Por baixo dos panos, as autoridades de Birmingham – em especial o clero anglicano – estimularam ataques de arruaceiros contra a casa do pastor “subversivo” e de outros membros da sociedade, como William Withering, em 1791.

Priestley teve de fugir da cidade e acabou emigrando para os Estados Unidos, independentes desde 1776. Depois de sua partida, os encontros nunca mais foram os mesmos, com os membros cada vez mais preocupados com a situação política (e tentando salvar os próprios pescoços). Na virada do século, os encontros praticamente tinham parado, e a nova geração olhava com desconfiança para os experimentos malucos e idéias radicais dos “lunáticos”. Não que isso importasse muito: nas fábricas, máquinas e objetos do século 19, era clara a marca deixada pela Sociedade Lunar.



Vovô Darwin e a origem das espécies
Avô de Charles tinha suas próprias idéias sobre a evolução
Erasmus Darwin pode não ter descoberto um mecanismo tão claro quanto a seleção natural, como seu neto Charles faria décadas mais tarde, mas o médico fez uma série de observações clarividentes sobre a evolução dos seres vivos. Inspirado por Carl von Linné, o botânico sueco que criou a nomenclatura usada ainda hoje para designar animais e plantas (como o nome duplo Homo sapiens atribuído ao homem), Erasmus se tornou um grande observador dos vegetais. Em seu livro The Loves of Plants (“Os Amores das Plantas”), ele reuniu seus achados numa mistura curiosa de versos shakespearianos e notas em prosa. Nessa obra e nas seguintes, como The Temple of Nature (“O Templo da Natureza”), Darwin destaca a importância do sexo para as formas e o comportamento dos seres vivos, um ponto que seria confirmado pelos futuros biólogos evolutivos. Seus escritos estão cheios de metáforas libidinosas, em que até as plantas vivem encontros amorosos, adultérios e poligamia. E ele cogita que todos os animais descendem de um único ancestral, um “filamento vivo” – outro chute bem-dado que os paleontólogos e geneticistas iriam provar mais tarde. Assim como seu descendente, Erasmus despertou a ira de alguns religiosos com suas idéias. Brincando com fogo, ele pegou o brasão da família Darwin (formado por três conchas) e adicionou a ele o lema em latim E conchis omnia (“tudo deriva das conchas”), como exemplo de sua idéia do ancestral comum. Thomas Seward, o bispo de Lichfield, ficou fulo da vida com a idéia e compôs um ou dois versos satíricos desancando Darwin. Erasmus acabou desistindo do gesto e retirou a frase do escudo da família.

Receita de esposa
Thomas Day acreditava que poderia criar a mulher ideal
O prêmio de radicalismo filosófico certamente é de um dos mais jovens membros da Sociedade Lunar, Thomas Day. Inspirado pelas idéias de Rousseau e decidido a criar para si mesmo a esposa ideal – “com gosto pela literatura e pela ciência” e ao mesmo tempo “simples como uma montanhesa e destemida e intrépida como as mulheres espartanas” –, Day adotou duas garotas, uma morena de 11 anos e uma loura de 12, e passou a criá-las. A que se saísse melhor nos quesitos acima viraria sua companheira. Desnecessário dizer que a idéia foi um fracasso. Decidido a começar do zero na sua tarefa educativa, Day começou rebatizando as ninfetas, dando à lourinha o nome de Lucretia, e à morena, o de Sabrina. Levou a dupla para uma viagem filosófica pela França, mas elas acabaram ficando doentes e, ainda por cima, a brigar pela atenção do filósofo como duas autênticas aborrescentes. Na volta à Inglaterra, Day logo desistiu de Lucretia, que recebeu um dote e se casou com um tecelão. A outra, Sabrina, tinha se tornado uma beldade, segundo os relatos da época, e causou sensação entre os intelectuais das Midlands. Mas a moça não passou nos testes “espartanos” do filósofo. Um deles incluía não gritar quando ele derrubava cera quente nas mãos dela. Em outro, Day fingiu confessar à Sabrina que sua vida estava em grave perigo e que ela não podia contar o fato a ninguém (no dia seguinte, todos os amigos e criados do filósofo já estavam sabendo). No fim, ela acabou se casando com John Bicknell, amigo de seu ex-tutor. Essa não foi a última das excentricidades amorosas de Day. Ao apaixonar-se pela refinada Elizabeth Sneyd, que não queria nem ouvir falar das pataquadas espartanas dele, o filósofo decidiu passar um ano na França aprendendo a última moda da época sobre dança, cortesia e roupas. Não adiantou muito: Elizabeth decidiu que preferia o Day antigo, embora ainda não quisesse se casar com ele. Mais tarde, o filósofo finalmente achou uma companheira, Esther Milnes, que topou seguir seus ideais linha-dura.

Saiba mais
Livro

The Lunar Men, Jenny Uglow, Farrar, Straus and Giroux, 2004 - Uma enciclopédia sobre os “lunáticos” e sua época, acompanhando a trajetória de dezenas de personagens e sua relação com os eventos mais importantes do século 18.

Site

www.erasmusdarwin.org - Para os interessados em conhecer como os “lunáticos” viviam, vale a pena visitar virtualmente as casas de Erasmus Darwin e Matthew Boulton, ainda preservadas em Lichfield e Birmingham

Revista Aventuras na Historia

A revolução médica

A revolução médica
Dez descobertas que nos mantêm vivos
Álvaro Silva
Em pouco mais de 200 anos, tratamentos grotescos tornaram-se precisos. Doenças foram controladas, “milagres” passaram a ser descritos em livros científicos e as pessoas pararam de morrer. Em 1790, havia na Terra 1 bilhão de pessoas. Hoje, o número de habitantes do planeta chega a 6,4 billhões.

1798 - Vacina

Até então, evitava-se varíola com um costume turco de colocar secreções das feridas dos doentes sob a pele de pessoas sãs. Adquiria-se a doença de forma leve, ficando imune ao contágio forte. Mas muitos morriam. Em 1798, o inglês Edward Jenner coletou a secreção de vacas (daí o nome “vacina”. Como a varíola bovina não matava ninguém, Napoleão mandou vacinar suas tropas.

1846 - Anestesia

O dentista William Thomas Green Morton já havia utilizado nitrogênio para anestesiar pacientes com inflamações dentárias. Em 1846, ele fez um paciente inalar NO2 antes da operação. O paciente nada sentiu. E, cheio de si, Morton disse que aquela era a mais gloriosa descoberta na história da ciência. A sala onde a demonstração foi feita é hoje patrimônio da humanidade.

1867 - Assepsia

Não havia mais dor, mas cerca de 45% dos operados morriam misteriosamente. Foi Joseph Lister, cirurgião inglês, quem conseguiu explicar e controlar o fenômeno. Baseado nos estudos de Louis Pasteur, Lister percebeu que microorganismos infeccionavam as feridas dos operados. Decidiu usar um desinfetante, o ácido fênico, durante os trabalhos. O número de mortes em cirurgias caiu para 1%.

1895 - Radiografia

O alemão Wilhelm Roentgen descobriu por acaso a estranha radiação que passava por certos materiais e imprimia uma espécie de fotografia. Fez sua esposa meter a mão no meio da radiação e notou que aquele raio que ele chamou de “X” seria útil à medicina.

1901 - Transfusão

Em 1901, quando o austríaco Karl Landsteiner publicou um artigo sobre os tipos sanguíneos, era proibido tentar fazer transfusões de sangue. Seu estudo foi um grande avanço, mas não conseguira identificar o tipo AB. A correção foi feita em 1909, por Emil von Dungern e Ludwick Hirsfeld. E, desde então, as transfusões passaram a ser uma prática rotineira.

1908 - Água Tratada

Em 1900, 25 mil pessoas morreram de febre tifóide nos Estados Unidos. Anos depois, esse número cairia para menos de 100 por causa do uso de cloro para purificar a água. A cloração começou a ser usada em Jersey City, e chegou ao Brasil na década de 1926. Eliminando doenças intestinais infecciosas, ela aumentou a expectativa de vida em mais de 50%.

1928 - Penicilina

Ao sair de férias, o médico inglês Alexander Fleming esqueceu amostras de estafilococos em seu laboratório. Quando voltou, as bactérias estavam cobertas de fungos. Um deles, do gênero Penicilium, produzira um halo branco: era a substância bactericida que seria a mãe dos antibióticos.

1958 - Transplante

Foi o francês Jean Baptiste Dausset quem explicou o problema da rejeição de órgãos transferidos de uma pessoa para outra. Ele percebeu que os glóbulos brancos dos pacientes – e não os vermelhos, como se acreditava – eram os responsáveis pela rejeição. Seus estudos lhe renderam o prêmio Nobel e deflagraram, em dez anos, uma onda de transplantes de órgãos, entre eles, o coração.

1978 - Bebês in Vitro

A realidade estava cada vez mais próxima da ficção científica. Em Oldham, Inglaterra, nasceu o primeiro bebê de proveta – a pequena Louise Brown. Louise cresceu normalmente. Aos 18 anos, formou-se professora e foi trabalhar em creches. Para gerar a menina, a fertilização in vitro foi estudada por 16 anos pelos médicos Robert Edwards e Patrick Steptoe. Na época, 15% dos casais não conseguiam ter filhos.

2004 - Célula-tronco

Uma das maiores descobertas médicas ocorreu no ano passado: o uso de células embrionárias, extraídas do cordão umbilical ou da medula para reconstituir tecidos. No Brasil, dezenas de cardíacos foram tratados com as células-tronco. Para religiosos radicais, porém, a possível cura de males como a tetraplegia atentam contra a vida porque utilizam embriões humanos.

Revista Aventuras na Historia

Vade retro, satanás!

Vade retro, satanás!
A difusão da prática do exorcismo na América portuguesa foi favorecida pelos rituais indígenas e africanos e pela precariedade da medicina colonial
Márcia Moisés Ribeiro

Nem sempre o diabo teve patas de bode, chifres, rabo e cheiro de enxofre. Antes abstrato e teológico, foi durante o Renascimento que ele ganhou forma nas paredes e capitéis das igrejas. O medo do diabo foi então se alastrando pelo Ocidente de uma forma jamais vista, e a partir do século XVI uma verdadeira obsessão satânica tomou conta do imaginário europeu, com um impressionante conjunto de imagens do inferno e seus horrores invadindo a Europa. Ao mesmo tempo, a cultura escrita difundia o medo do demônio tanto nas publicações populares quanto nas obras eruditas. Assim, mascates, ambulantes e afamados mágicos negociavam folhetos e brochuras ensinando como fugir das armadilhas diabólicas, enquanto teólogos e doutores da Igreja se dedicavam aos inúmeros tratados de demonologia escritos a partir dessa época.

Essa vasta literatura dedicada aos poderes diabólicos ganha impulso com os surtos de possessão demoníaca coletiva que se tornaram famosos pelo continente, principalmente na França e na Inglaterra do século XVII. Tais obras mostravam o diabo como capaz de alterar o curso dos céus e realizar tudo o mais que pudesse perturbar o natural andamento do cotidiano. Por meio dos feiticeiros – seus grandes aliados –, podia matar o gado e lançar-lhes doenças, tornar estéreis campos que antes eram férteis e ainda destruir as colheitas. Dado o imenso poder que lhe era atribuído, muitos o chamavam de “príncipe deste mundo”. Além da intervenção no curso da natureza, a ação diabólica atingia o corpo e a alma dos homens, fazendo dos sãos pessoas doentes, e dos lúcidos, espíritos imundos e perturbados.

A Igreja católica sempre ofereceu armas celestiais contra o diabo, porém foi durante a onda de satanismo do Renascimento que os meios de combate, especialmente os exorcismos, ganharam destaque. Sua origem perde-se na noite dos tempos, e diversos povos da antiguidade já se valiam desses ritos para expulsar espíritos considerados malignos. Dentre as armas desenvolvidas pela Igreja católica contra o demônio estavam as orações, o culto aos santos, as imagens miraculosas, as relíquias, a água benta e sobretudo os exorcismos, considerados o meio mais eficaz de combatê-lo.


Portugal e suas colônias também conheceram a difusão dos ritos de expulsão demoníaca, embora em escala menor que entre ingleses e franceses. Os exorcismos eram regulamentados por tratados específicos e, apesar de nenhum desses livros ser de origem lusitana, as principais obras que circulavam na Europa sobre o assunto foram traduzidas para o português. Afinal, era grande o número de indivíduos que se diziam possuídos pelo diabo e, conseqüentemente, também o de exorcistas que atuaram no império português a partir do século XVII. A função desses livros era impor regras às funções dos exorcistas, evitando assim que seu desempenho fosse confundido com rituais supersticiosos. Entretanto, as normas destinadas a regulamentá-los estiveram longe de serem obedecidas.

De acordo com os manuais de exorcismo, um dos sinais mais evidentes da possessão diabólica era o conhecimento de línguas estrangeiras sem nunca tê-las aprendido, principalmente o latim. Outros sintomas seriam a faculdade de saber de fatos que se passavam em lugares distantes, a adivinhação e a capacidade de praticar ações sobrenaturais – levitar, mover objetos sem tocá-los etc. Havia ainda outros indícios. Difundia-se a crença de que os endiabrados tinham verdadeira repugnância por objetos e imagens sagradas, que se sentiam muito incomodados durante as orações e leitura do Evangelho e que a figura do sacerdote lhes causava verdadeiro pavor.

As denúncias e processos da Inquisição movidos contra curandeiros e supostos feiticeiros mostram que, na maior parte das vezes, a procura por rituais mágicos decorria de problemas de saúde, físicos ou mentais. No universo das curas sobrenaturais, havia dois caminhos possíveis, sendo um oferecido pela Igreja e outro pelos afamados feiticeiros. No mundo colonial, marcado pela baixa condição sociocultural de seus habitantes, pela precariedade da medicina e ainda pela influência das religiões africanas e ameríndias – que também faziam uso de cerimônias de despacho dos espíritos malignos –, não é de se estranhar que as pessoas procurassem o feiticeiro antes de procurarem um exorcista. Dessa forma, só restava à Igreja intensificar a propaganda difundindo a eficácia de seus ritos.


Doenças desconhecidas, difíceis de aplacar com remédios naturais – e, portanto, suspeitas de serem causadas por feitiços –, eram normalmente as causadoras da busca por exorcismos. E, por mais estranho que pareça, a crença de que o diabo podia ser o autor das desordens corporais atingia não apenas indivíduos comuns ou homens da Igreja, mas renomados médicos, formados nas mais expressivas universidades européias. Além das tradicionais sangrias e indicações de medicamentos feitos a partir de produtos dos três reinos da natureza – mineral, vegetal e animal –, eles também defendiam os exorcismos como meio eficaz para aplacar as doenças. Muitas vezes, incapazes de compreender as leis que regiam o funcionamento do corpo e de apresentar soluções favoráveis para sua cura, os médicos acabavam se valendo das teorias da demonologia como uma espécie de “ciência auxiliar” que não só os ajudava a diagnosticar as doenças, como a justificar os limites da medicina.

A obsessão pelo satanismo é muito visível em determinados livros de medicina no século XVIII. Por mais contraditório que pareça, o século das Luzes – que defendia a razão como principal meio para trazer “luz” e conhecimento aos homens – foi marcado pela presença da magia, da demonologia, da feitiçaria e dos exorcismos. No caso de Portugal, até por volta de 1772 – quando a Universidade de Coimbra passa por uma série de reformulações – o aprendizado da medicina se fazia mediante a leitura das versões latinas dos gregos Hipócrates (c.460 a.C.-377 a.C.) e Galeno (c.131-c.200), e de seus comentadores árabes, como Avicena (980-1037) e Averróis (1126-98). Formulada pelos gregos e posteriormente ampliada por Galeno, a teoria da existência de quatro humores no organismo (sangue, fleuma, bile e bile negra, ou melancolia) vigorou na medicina de Portugal e do Brasil pelo século XVIII adentro. Para a conservação da saúde, os humores deveriam estar presentes no organismo em quantidades proporcionais e equilibradas. De acordo com esse sistema, a bile negra, ou humor melancólico, normalmente associada à noite e às trevas, era considerada o humor preferido do diabo. Se cabia aos médicos cuidar das disfunções humorais, por que não tratariam dos problemas ligados ao humor melancólico partilhando crenças comuns aos teólogos e abordando a demonologia da mesma forma que dissertavam sobre qualquer outro assunto referente à medicina?

Apesar de encontrar adeptos em diferentes setores da sociedade, os exorcismos só podiam ser realizados por indivíduos autorizados pela Igreja. Assim, além de possuir a ordem de exorcista, era imprescindível obter licença da diocese da qual o padre exorcista fizesse parte. Portando o crucifixo, estola e sobrepeliz – tal como determinado por Roma –, o exorcista começava o ritual. Inicialmente havia um interrogatório no qual o suposto endemoniado dava informações detalhadas ao religioso sobre o que se passava com ele, o que o afligia, onde doía e, enfim, o que o levara a suspeitar da presença do Maligno. Ajoelhados, os supostos endiabrados deveriam seguir todas as ordens do padre.


Os manuais de exorcismo defendiam que, durante o ritual, o religioso tinha de manter um ar sério e sisudo para melhor enfrentar o diabo, e a voz deveria soar bem alta, refletindo a superioridade da Igreja sobre os espíritos do mal. Gritos, açoites, bofetadas e cuspidelas no rosto do suposto endemoniado também faziam parte do cerimonial. De acordo com esses mesmos livros, os possessos urravam e estrebuchavam no chão, dizendo blasfêmias e palavras sem sentido. Vomitavam coisas estranhas, como penas, alfinetes e bichos peludos, enquanto o sacerdote dizia fuga satana! (fora, Satanás!) em altos brados. Quando o diabo não era eliminado com facilidade, eram necessárias várias intervenções do sacerdote.

As igrejas eram eleitas como locais mais propícios para a realização dos esconjuros. Mas, no caso de o doente estar impossibilitado de deslocar-se até o Templo Sagrado, permitia-se que fossem feitos na própria casa do enfermo ou mesmo do sacerdote – o que acabava favorecendo variadas transgressões.

Durante o século XVIII, muitos exorcistas foram denunciados ao Santo Ofício por transgredir a aplicação dos exorcismos. Os delitos cometidos iam de práticas consideradas supersticiosas até o envolvimento sexual entre os religiosos e as endemoniadas. Aproveitando-se da posição de “intermediários” entre Deus e os homens, alguns exorcistas cobravam pelos seus serviços, pediam alimentos e chegavam até mesmo a roubar objetos de valor, como jóias, dos “possessos” a quem atendiam.

A leitura dos processos da Inquisição de Lisboa confirma que as mulheres eram a maior parte da clientela. Naturalmente frágeis e propensas ao predomínio do humor melancólico – segundo as teorias médicas da época –, eram consideradas presas preferidas do diabo e capazes de gerar situações embaraçosas. Ardiloso e tentador, o demônio podia pôr tudo a perder, dominando o exorcista e induzindo-o ao pecado da carne. Apoiados, portanto, na convicção de que o “príncipe das trevas” desviava até mesmo os religiosos do bom caminho, os autores de manuais advertiam os leitores para o fato de o esconjuro de mulheres requerer imensos cuidados. Entretanto, na prática, tais advertências pouco valiam, e durante toda a época colonial os “padres diabos” continuaram cometendo toda sorte de abusos sexuais contra mulheres.


Nas primeiras décadas do século XVIII, atuava em Portugal certo frei Luís das Chagas, que tinha um modo muito peculiar de exorcizar as mulheres: “mandava deitá-las de costa e punha-se a cavalo nelas sobre o estômago (...) Metia as mãos por baixo da roupa (...) e mandava o dito padre se lhe metessem entre as pernas e se abraçassem com ele e desta forma lia os exorcismos (...) dizendo que ele fazia muitas coisas que não se achavam nos livros mas que a experiência lhe ensinava e que Deus Nosso Senhor lhas inspirava”. No Brasil, frei Luís de Nazaré, carmelita que vivia em Salvador por volta de 1730, sempre que era chamado para exorcizar mulheres, dizia que para recobrar a saúde era essencial ter relações carnais com ele.

Por tudo isso, um conjunto de instruções destinadas a regulamentar o ofício dos exorcistas, datado da década de 1770, dizia que “quando o exorcismo se fizer a alguma mulher, deverão estar presentes dois homens de idade madura e vida bem regulada e também algumas mulheres de boa vida e costumes e quanto pode ser suas parentas e não consentirá que assistam mais outros homens, só se for um eclesiástico”.

Buscando impedir tantos abusos, a Igreja toma uma série de providências, punindo com rigor aqueles que praticassem os esconjuros de forma indevida. Com pouquíssimas exceções, todas as acusações da Inquisição contra exorcistas infratores do mundo luso-brasileiro são do século XVIII. Ameaçada por uma ordem cultural mais cética que se impunha sobre o cenário europeu e ainda por setores racionalistas do próprio clero, a Inquisição portuguesa intensificou a vigilância aos exorcistas infratores.


Foi esse espírito racionalista que, nas últimas décadas do século XVIII, levou José Monteiro de Noronha – vigário-geral do Rio Negro e professor de teologia moral na catedral de Belém, no Grão-Pará – a escrever um conjunto de instruções destinadas a esclarecer sobre a falsidade de grande parte das operações sobrenaturais e manifestações diabólicas. Considerava que os culpados pela ignorância das populações eram os próprios clérigos, que costumavam acreditar em falsas manifestações de possessão diabólica. Envolto pela filosofia iluminista, e colocando-se como um autêntico defensor das ciências, atribuía a causa de tantos erros e abusos à “ignorância da física e da medicina”. Tal observação é extremamente significativa, pois mostra que na distante capitania da América alguns seguiam as mesmas idéias dos grandes vultos do pensamento ilustrado europeu. Entretanto, isso não significa que a polêmica envolvendo o tema do diabolismo e da magia, entre aqueles que defendiam o uso da razão para compreensão do mundo natural – os iluministas – e aqueles que defendiam uma visão de mundo “encantada” ou supersticiosa, tivera desfecho semelhante na América e em Portugal – onde as Luzes clarearam o horizonte em velocidade bem maior.

Na América portuguesa, a ausência da universidade – local por excelência de disseminação da cultura científica – dificultava o desenvolvimento dos novos modelos culturais e filosóficos propostos pelo Iluminismo. Paralelamente, as três etnias que formaram o Brasil somavam-se para garantir a solidez do pensamento mágico no universo colonial e sua resistência aos caminhos da razão.

Márcia Moisés Ribeiro é pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP) e autora de A ciência dos trópicos – a arte médica no Brasil do século XVIII (Hucitec, 1997) e também de Exorcistas e demônios – demonologia e exorcismos no mundo luso-brasileiro (Campus, 2003).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Navegar é preciso, contar também

Navegar é preciso, contar também
Relatos de naufrágio tornaram-se populares na Europa do século XVI ao narrar as aventuras e infortúnios das viagens dos portugueses além-mares, incluindo Brasil
Angélica Madeira
Portugal lançava suas naus ao mar, com vistas para o mundo: África, América e, sobretudo, o Oriente. Estamos em meados do século XVI. Mesma época em que surge em língua portuguesa um gênero narrativo que ganha imediato prestígio e se espalha por toda a Europa, com grande sucesso. Trata-se dos relatos de naufrágio, notícias dos embarcados e de todo o universo de aventuras – e desventuras - que cercava as viagens dos navios mercantes portugueses ao ultramar.

De fato, desde a descoberta da rota das Índias por Vasco da Gama, em 1498, uma armada em direção ao Oriente deixava o porto de Lisboa, todos os anos, por volta de março ou abril. Composta de quatro ou cinco naus, saía do Tejo até o Atlântico, tomava-o na direção do sul, contornava a África e ganhava a costa do Malabar, Goa, Cochim, ou mesmo o Ceilão, portos em que os portugueses estabeleceram feitorias e entrepostos comerciais. Os navios iam em busca de pimenta, cravo e canela, além de outras novidades e objetos de luxo que exerciam grande atração sobre os mercados europeus. Mesmo com riscos, não se cogitava interromper as aventuras. Muitos barcos e vidas eram perdidos, mas havia consenso sobre a necessidade de continuar o comércio com o Oriente. “Naufrágios não podem parar as navegações”, o rifão era uma voz uníssona.

As causas dos naufrágios eram bem conhecidas: embarcações velhas ou em mau estado, sobrecarga, arranjo desequilibrado das caixas no convés, falta de material de reposição, como cordas, velas e pregos. A explicação mística, porém, prevalecia: a culpa pelos pecados e o merecido castigo que chegava com o infortúnio do mar.


Grande parte da população estava envolvida no projeto expansionista português: negociantes, banqueiros, contrabandistas, traficantes e “oficiais del Rei”, como eram então denominados os funcionários da Coroa que ocupavam os muitos postos administrativos e técnicos na intrincada burocracia que então se formou. Surgiam instituições específicas para a execução do projeto. A começar pela Casa da Índia, em funcionamento desde 1502, que contratava homens para os trabalhos no interior dos navios assim como para tarefas em terra. Da mesma maneira, uma série de profissões diretamente vinculada às viagens marítimas se estabelecia. Nesse cenário, não é difícil entender a grande popularidade alcançada por esses escritos de viagens acidentadas, que pode ser atestada pelas tiragens expressivas de mil exemplares em uma época em que um livro de sucesso não ultrapassava trezentas cópias.
Todos os relatos conhecidos narram acontecimentos da rota do Oriente, à exceção de um deles, o do naufrágio da nau Santo Antônio, ocorrido em 1565, em que viajava Jorge d’Albuquerque Coelho. Esse, além de ser um dos mais bem elaborados, do ponto de vista literário, é raro, pois narra um capítulo da história colonial brasileira. Embora comece com uma referência à política da metrópole – “No tempo em que a rainha dna. Catarina, avó d’el Rei d. Sebastião, governava o Reino de Portugal por seu neto” –, o que se segue é uma descrição sobre a capitania de Pernambuco e a atuação da família dos Albuquerque Coelho na guerra contra os índios Caetés.

A narrativa reúne também informações sobre as histórias fantasiosas que corriam na boca do povo, no porto de Olinda, prognósticos de feiticeiras, milagres e acontecimentos fantásticos, tendo como pano de fundo uma questão marcante do período: a guerra das religiões que aparece ali em sua versão particularizada, encarnada em personagens rudes, marinheiros, soldados e piratas, com intuito de evidenciar o alcance social daquele cisma que dividiu a Europa entre protestantes e católicos. Nesse contexto, a nau Santo Antônio, em meio a uma bruma espantosa, é aprisionada, na altura das ilhas do Cabo Verde, por piratas franceses. Protestantes luteranos, eles praticam todo tipo de heresia, quebrando imagens de santos, arrancando os terços e livros de missa dos portugueses, zombando de suas rezas. Essa nau sofre danos desde sua partida e, após sobreviver ao ataque dos franceses e a ventos e tormentas, chega, meses depois, toda estraçalhada, à Roca de Sintra.


Outros relatos do períodos fazem referência ao Brasil. Caso da nau São Paulo que saíra em direção à Índia, em 1560, mas, retardada por chuvas no golfo da Guiné, é obrigada a arribar ao porto da Bahia, onde atraca por 44 dias para reparos. O narrador, um boticário que ia para Goa, descreve a aventura com travo popular, humor ácido, povoado de ditados, citações e revelando também uma extraordinária capacidade de observação de costumes. Elogia a terra e suas belezas e segue afirmando que muitos homens que adoeceram de febres naquela viagem, ao chegarem ali, ficaram logo curados pelos bons ares: “...por ser esta terra do Brasil mui sadia e de muitos bons ares toda em si, por extremo e ter muito bons mantimentos e mui gostosos e sadios, assim os do mar como os da terra”.

A descrição prossegue com comentários sobre costumes indígenas, como a antropofagia, o resguardo dos homens, os códigos de honra; identifica graus de parentescos e os tabus que os regulam, tudo isso com uma invulgar capacidade de suspensão de valores, sem depreciar hábitos tão estranhos a um europeu. Retomando seu caminho para a Índia, apanha mares grossos e ventania, na altura das ilhas Tristão da Cunha, e naufraga nas proximidades do Cabo da Boa Esperança.

Também na Bahia aportou a nau São Francisco. Dessa experiência nasceu um relato, bastante incomum, escrito por um padre jesuíta sob forma de carta, em que conta as aventuras do navio que, saído para o Oriente, é empurrado pelos ventos para as costas brasileiras, sofrendo três naufrágios no Atlântico, todos sem drásticas conseqüências. O narrador não perde nunca seu senso de humor ao fazer o balanço de sua peregrinação que durou três anos. Confirma o viço da terra, rememora o bom passadio no Colégio da Bahia, encantado com as frutas desconhecidas (a banana, o abacaxi, a papaia, o jenipapo), sua beleza, perfume e sabor. Destaca as plantas curativas, o bálsamo, o óleo de copaíba e uma iguaria nova, uma erva santa, servida no fim dos banquetes: o tabaco. Erva tão cheia de virtudes, que os padres e leigos mal podiam esperar o fim da missa ou a comunhão para pitar e amezinhar o corpo.


Essa escrita que realça os aspectos informativos, curiosos e pitorescos das viagens ao mar, poderia, por si só, explicar o sucesso daqueles pequenos livros. Porém, razões menos evidentes justificam a trajetória bem-sucedida do sucesso dos folhetos: o fato de revelarem um sentimento de crise e de um estado de ânimo pessimista que tomava conta da Europa e, sobretudo, de Portugal que perdera a primazia das navegações oceânicas e sentia os efeitos de uma forte crise política, além de catástrofes naturais, tremores de terra e enchentes, surtos de pestes e revoltas populares.

Outros motivos, no entanto, concorrem para a popularidade dos relatos de naufrágio, dentre eles, um, de natureza técnica e material: a moda do texto impresso. Mesmo em um tempo em que a imprensa era recente, os livros, caros e a população letrada, muito reduzida, o sucesso desses livrinhos confirmava que o mundo havia entrado de forma irreversível na era da escrita. Portugal, em particular, já contava com a imprensa apenas três décadas após a invenção dos tipos móveis, em 1448, por Gutenberg. Em meados do século XVI, já havia um movimento editorial intenso, em que algumas casas se dedicavam a imprimir obras luxuosas, enquanto outras, pequenas tipografias, publicavam, em verso e em prosa, folhas soltas, em edições baratas e populares. Ali se encontravam as histórias mais estimadas do povo, vidas e milagres de santos, aventuras de bandidos célebres, romances de cavalaria — como os do ciclo do Rei Artur ou de Carlos Magno — ou histórias cômicas e sentenciosas, em meio às quais passaram a ser encontradas também as histórias de viagens e batalhas marítimas, assim como as relações de naufrágios dos galeões e naus da Índia.

É provável que muitas dessas histórias tenham se perdido. A principal documentação existente — uma coletânea com 12 relatos de naufrágio — resultou de um trabalho de edição e publicação, em dois volumes, em 1735 e em 1736, intitulado História trágico-marítima, de onde constam as narrativas dos naufrágios das naus Santo Antônio, São Paulo e São Francisco. A compilação foi feita pelo historiador oitocentista Bernardo Gomes de Brito, membro da Academia Real de História. Revela seu biógrafo, Barbosa Machado, que ele teria como projeto a publicação de mais três volumes contendo relatos semelhantes. Não se conhece a razão de tanto interesse de Bernardo Gomes de Brito, num período em que a historiografia oficial, de cujo círculo fazia parte, privilegiava o estudo das genealogias das famílias reais, das batalhas e das biografias de personalidades, a prosopopéia; e temas religiosos, a vida dos santos, a hagiografia e a teologia.


Não se sabe também por que interrompeu seu projeto e publicou apenas os dois primeiros volumes, dos cinco pretendidos. As causas podem estar nas dificuldades que encontrava à época qualquer livro para ser publicado, entre elas a de ser submetido às muitas instâncias do Santo Ofício e do Paço. A História Trágico-marítima demorou seis anos em tramitações burocráticas. Desde que foram iniciados, em 1729, os pedidos de licenças de praxe para sua publicação, até 1735, quando receberam finalmente a autorização, ou seja, o imprimatur.

Não fosse a coletânea de Gomes de Brito ficaria perdido para sempre um material precioso de pesquisas, para a história e para a literatura, pois, sem dúvida, os relatos de naufrágio prenunciam, de muitas maneiras, as convenções do relato histórico, do ficcional e do etnográfico, que ali aparecem de forma imbricada e embrionária.

Apesar das diferenças entre os relatos de naufrágio, eles são organizados segundo um modelo que traz na primeira parte a descrição da preparação para a viagem. Nela estão contidos os dados mais importantes sobre a organização da armada, datas, nomes, o porto de saída e o de destino. Após a partida, é narrada a vida a bordo, o trabalho, as rezas, os jogos, as calmarias letárgicas.


A ameaça de um naufrágio abre a segunda parte. Uma cena se impõe, abruptamente: uma avalanche de ondas que dos píncaros cavam abismos, ventos cruzados, chuvas, nuvens escuras, relâmpagos e trovoadas. É a preparação para o naufrágio. Começa então a luta dos homens contra a natureza em fúria. Eles fazem de tudo para não perder o timão, para esgotar a água, limpar os escoadouros entupidos de pimentas. A situação agrava-se mais e mais e, então, para os navios ficarem mais leves e governáveis, torna-se necessário jogar as mercadorias ao mar.
Os narradores descrevem um quadro fantástico: o mar coberto de barris e caixas, mercadorias caras, tapetes, tecidos, brocados; mirra e benjoim, riquezas que eram antes tão amadas por seus donos e que, no momento do perigo, são um estorvo, dificultando o equilíbrio dos navios. As cenas do naufrágio da nau São Tomé ilustram o tom desses relatos: “tudo quanto viam se lhes representava a morte; porque por baixo viram a nau cheia de água, por cima o céu conjurado contra todos, porque até ele se encobriu com a maior cerração e escuridade que se viu. O ar assobiava de todas as partes, que parecia que lhe estavam bradando morte, morte”.

São também descritas cenas que aconteciam no interior dos navios: os homens trabalhando, crianças e mulheres chorando, outros se confessando em voz alta, padres organizando rezas e ladainhas, tudo isso em uma linguagem exaltada e crivada de imagens altissonantes. Em torno da imagem poderosa do naufrágio, desenvolve-se uma profusão de motivos que preparam a ação: nuvens, chuvaradas e relâmpagos, elementos que estão ali não para reportar fenômenos atmosféricos, mas para configurar uma concepção trágica da existência, em que o mundo encontra-se arruinado pela cobiça e os personagens, pela culpa. Assim, desfila no texto um vasto repertório de alegorias que,
em muitos aspectos, prenunciam o barroco, em sua obsessão por temas extraordinários.


Na sucessão dos acontecimentos, passado o clímax do naufrágio, é dada a hora de buscar e contar os sobreviventes, em geral os que escaparam em barcos salva-vidas ou os que foram jogados, pelas ondas, nas praias da costa oriental da África.

Nesse ponto, inicia-se a terceira parte do relato: a perdição em terras desconhecidas, aventuras e encontros surpreendentes com reis mouros e africanos, sofrimentos, trabalhos e necessidades. Após o naufrágio, a narrativa retoma um tom mais informativo e traz descrições de hábitos e ritos das tribos, observações curiosas e depoimentos sobre a dificuldade de se comunicar, de resgatar água potável e alimentos, trocados, em geral, por pregos e pedaços de ferro que os portugueses conseguiam recuperar da nau destroçada.

Tanto no auge do naufrágio quanto no momento que o sucede — quando os sobreviventes estão perdidos e necessitados —, os narradores lançam mão de imagens alegóricas muito impressionantes para figurar a desproporção entre as forças da natureza e a fragilidade humana, a inutilidade das riquezas acumuladas, a inversão da roda da fortuna. Eles se valem também de recursos retóricos para ampliar o efeito da cena trágica sobre o leitor. Quando os portugueses iniciam sua caminhada pelas praias e sertões da África, fazem-na ordenadamente, em forma de uma procissão, com uma cruz à frente, como penitentes arrependidos, enrolados em cordas, purgando suas culpas. Tudo isso, como diz um narrador, para “manter a morte diante dos olhos” e levar as pessoas à piedade e à contrição.


Ao ter o naufrágio como foco dramático principal, uma cena-fantasma na memória do narrador, o relato assume muitos outros papéis. Serve como um ex-voto, para agradecer a Deus o fato de ter sobrevivido; serve também para provocar um efeito catártico, “folgar com o fim daqueles males”, e poder descansar do passado. Prenunciando as peças fúnebres da oratória do barroco, os epitáfios e as elegias, tão difundidos na cultura barroca européia, os relatos de naufrágio apresentam uma coleção de temas para meditação. Alegorias sérias e silenciosas, personagens em luto, desenganados, modos trágicos de morrer no mar.

MARIA ANGÉLICA MADEIRA É PROFESSORA E PESQUISADORA DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E DO INSTITUTO RIO BRANCO. DOUTORA EM SEMIÓTICA PELA UNIVERSIDADE PARIS VII, É AUTORA DE LEITURAS BRASILEIRAS: ITINERÁRIOS NO PENSAMENTO SOCIAL E NA LITERATURA (PAZ E TERRA, 1999) E DE LIVRO DOS NAUFRÁGIOS – ENSAIO SOBRE A HISTÓRIA TRÁGICO–MARÍTIMA (UNB, 2005).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Pobre samba meu

Pobre samba meu
Associado à tradição, a partir dos anos 1950, o samba perde espaço e prestígio no mercado para estéticas musicais mais “modernas”, como a bossa nova, a tropicália e o rock
Felipe Trotta

Durante a primeira metade do século XX, o samba se tornou o principal gênero do mercado de música popular brasileira. Na voz de cantores de grande apelo popular, como, entre outros, Chico Alves, Nelson Gonçalves e Orlando Silva, o “cantor das multidões”, que pelas ondas do rádio alcançavam públicos do Brasil inteiro, pode-se dizer que o gênero se firmou como símbolo da unidade nacional e, gradativamente, ampliou seu prestígio no conjunto da sociedade e se consagrou no mercado. Apesar de eventuais preconceitos das elites intelectualizadas contra esse gênero saído dos morros cariocas, redutos dos pobres e excluídos, o mercado musical sempre conviveu muito bem com o imaginário impresso nas composições, fortemente apoiado em referências simbólicas – “o morro”, o “barracão”, a “favela” – originárias das rodas comunitárias onde eram produzidas. No final da década de 1950, contudo, esse convívio relativamente tranqüilo começou a se alterar. Foi quando jovens da classe média, como Carlos Lyra, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, passaram a se reunir em apartamentos da Zona Sul do Rio de Janeiro para trocar idéias e propostas musicais. Não precisavam de muito. Bastavam “um cantinho, um violão”, como na música de Tom Jobim. Dispensavam a voz “impostada” dos grandes intérpretes do período e o aparato cênico que a Rádio Nacional e o cinema montavam para apresentar os novos lançamentos da MPB.

O fato é que o surgimento da bossa nova inaugurou uma nova fase no mercado de música. Para seus teóricos, a bossa nova se caracterizava pela busca de novos elementos musicais capazes de dar ao samba um caráter “moderno”, em sintonia com o desenvolvimentismo do momento político-cultural do governo de Juscelino Kubitschek. O Brasil vivenciava uma atmosfera de otimismo e de crença no futuro, e o novo gênero seria uma expressão legítima de tais sentimentos. Em vez dos antigos temas da música brasileira, falava-se agora do barquinho, do violão, do sol, do sul, do mar e do amor. Mas e o samba? Que lugar estaria reservado a ele nessa nova conjuntura?


“Tradição” e “modernização” são noções que demarcam formas de relação com o tempo. A primeira estabelece uma ligação entre o presente e o passado, valorizando aspectos e fatos em detrimento de outros. Já a idéia de “modernidade” se volta para o presente, renegando o passado a um plano inferior, representado como algo sem importância, que “já passou”. Samba e bossa nova são duas categorias do mercado de música que, como veremos, se identificam respectivamente com as idéias de “tradição” e “modernidade”, e que, a partir delas, construíram formas e estratégias distintas de valorização estética.

Elaborado no seio de um conjunto social formado majoritariamente por ex-escravos e seus descendentes, o samba sempre esteve associado a um ambiente comunitário, ao convívio cotidiano de parentes, amigos e vizinhos, e também à idéia de festa, de sociabilidade e de lazer. Esse ambiente era representado no repertório principalmente através de uma série de símbolos que expressavam laços afetivos, servindo como elo entre as pessoas e promovendo coesão social nessa parcela da população. O “morro”, a “favela”, o “bairro” e a “escola de samba”, entre outros, freqüentam espaços de destaque no imaginário do repertório do samba, formando um universo rico de auto-referências musicais e afetivas.

Por outro lado, a identificação com símbolos e práticas culturais desses grupos de baixa renda formados em sua maioria por negros e mulatos produziu, externamente, uma reação preconceituosa contra o gênero, que passou a ser atacado, segundo Adalberto Paranhos, como “coisa de negros e vadios”. Perseguido pela polícia e associado a vários tipos de delinqüência no início, o samba aos poucos foi conquistando espaços no disco, no rádio e no mercado de shows.


A modernidade do estilo da bossa nova colaborou para estabelecer uma distinção no consumo musical em sintonia com a situação econômico-social dos diferentes públicos a quem se dirigia: uma música destinada ao consumo das elites intelectualizadas, e a outra, chamada de “tradicional”, que incluía o samba, destinada às “camadas mais baixas”. Musicalmente, os elementos da bossa nova sedimentaram essa distinção, aproximando a prática desse grupo de músicos e artistas dos critérios de valoração da música erudita.

O padrão de qualidade da música ocidental deriva da obra de compositores como Bach, Mozart, Beethoven e contemporâneos, a partir das quais se elaborou uma teoria musical ensinada em conservatórios e escolas de música no mundo todo. Nesse sentido, a bossa nova adquiriu grande prestígio estético, tendo contribuído certamente para isso a participação no movimento de Tom Jobim, músico de formação erudita, e de Vinicius de Moraes, poeta benquisto no meio intelectual que aderira a formas populares de expressão.

A bossa nova utilizou estruturas musicais de maior complexidade e, ao mesmo tempo, eliminou a polirritmia da percussão do samba, proposta sintetizada na batida de violão de João Gilberto, intérprete de Chega de saudade, de Tom e Vinicius, composição de 1956 que é considerada um marco do movimento. Soma-se a isso a interpretação vocal intimista do cantor, que se distanciava do canto popular impostado, amplamente utilizado pelos antigos intérpretes de samba das décadas de 1930-40. A bossa nova representava uma modernidade elegante, que rapidamente foi reconhecida como de alta qualidade.


O samba, por sua vez, estava cada vez mais estreitamente associado com o imaginário das rodas e do “fundo de quintal”. Essa ênfase aparecia na valorização de sua sonoridade característica (cavaquinho, pandeiro, cuíca, surdo e violão) e em referências a um passado glorioso do gênero, às escolas, e a espaços legitimados do seu imaginário, como as “esquinas, os botequins e os terreiros” do samba de Nelson Sargento. O samba iria buscar então um tipo de valoração mercadológica fortemente identificado com a “tradição”. Com isso, passou a ocupar uma zona de menor prestígio estético nesse mercado, sendo caracterizado como uma prática dotada de menor grau de sofisticação, “parada” no passado e por isso menos relevante para a história da música popular brasileira.

A mudança no patamar hierárquico da categoria samba acentuou diversos preconceitos relacionados à origem do gênero, que perpassam sua trajetória até os dias de hoje. Além do preconceito racial e social, o gênero continua sendo visto como uma prática cultural de menor valor artístico e estético, uma vez que seus elementos estruturais não correspondem aos critérios de qualidade cunhados pela bossa nova. A estratégia de legitimação utilizada por sambistas e admiradores do gênero colabora indiretamente para a manutenção dessa posição, ao se basear na valorização do samba a partir de sua vivência comunitária nas rodas, subúrbios e morros, associando-a com recorrência à “tradição”.

Um episódio que ilustra muito bem essa distinção valorativa do samba no mercado e no imaginário brasileiro ocorreu no réveillon de 1996, no Rio de Janeiro, quando seis artistas de prestígio no mercado fizeram um show em homenagem a Tom Jobim, falecido dois anos antes. Por essa apresentação, o sambista Paulinho da Viola recebeu um cachê três vezes menor que o dos demais artistas. Em meio a muitas brigas, acusações e xingamentos, ficou claro o desprestígio de um artista de samba, se comparado a outros identificados com uma categoria de mercado mais conceituada e reconhecida como de alta qualidade. Segundo Eduardo Coutinho, o episódio revelou uma desvalorização da “tradição”, que desde meados do século XX havia se tornado um critério de valoração menos reconhecido do que a “modernidade”.


Como movimento musical, a bossa nova durou pouco tempo. No entanto, a noção de modernidade aliada à qualidade se revelou um critério de valoração perene na música nacional. A cantora Nara Leão, musa do movimento, incorporaria ao seu repertório compositores “do morro”, como Zé Kéti e Nelson Cavaquinho, e do Nordeste, como João do Vale, que reapareciam em público assim numa roupagem mais ao gosto da classe média e finalmente começavam a vender discos. Ao mesmo tempo, o golpe civil-militar de 1964 ensejaria músicas politicamente “engajadas”, como as de Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo, compositores formados no contexto bossa-novista, que também tentam resgatar, a partir de uma perspectiva “moderna”, as tradições populares da música brasileira.

No final da década de 1960, o tropicalismo, movimento fundado, entre outros, pelos baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso, iria acrescentar um novo aspecto à modernidade, incorporando elementos da canção de massa internacional. Para seus protagonistas, a estética musical do Brasil não podia se resumir a uma música “engajada” ou a uma modernidade estética “alienada”, e propunham uma “retomada da linha evolutiva”, que nesse caso, representava a possibilidade de inclusão de elementos estéticos importados de músicas estrangeiras. Nesse sentido, a modernidade se aliou também à mistura, ao mercado e à quantidade.

Entre a quantidade e a qualidade moderna, nasceria uma nova categoria de mercado identificada pela sigla MPB. Nessa estética, samba, baião, rock, frevo e balada são apenas ritmos disponíveis para elaboração da criação individual de um artista muito valorizado esteticamente. No mesmo período, a indústria fonográfica fixou no LP a forma principal de produção de discos, que substituía os antigos compactos. O LP aumentou ainda mais a importância do artista, pois o disco passou a ser representado não mais a partir de cada música isolada, mas pelo conjunto, unido esteticamente em torno da mítica do “artista”. Mais uma vez, o samba, com seu caráter comunitário e coletivo, se via diminuído em face do elevado prestígio individualizado da liberdade estilística dos artistas da MPB. O episódio do réveillon de 1996 é um exemplo contundente desse rebaixamento hierárquico.


Desde a década de 1960, o gênero samba vive disputando mercado com uma ampla gama de músicas “modernas”. Na zona de prestígio, a “modernidade” da bossa nova transborda para diversas estéticas que circulam pela sociedade através da MPB, sempre num patamar hierárquico mais vantajoso que o do samba. Na área comercial, o rock, o pop, o reggae e várias outras estéticas internacionais “modernas” que por aqui aportam encontram no samba uma antítese nacional com a qual disputam território midiático e parte do público. Avesso a essa modernidade (tanto do lado da quantidade quanto no da qualidade), o samba se abraçou à sua “tradição” e andou peitando brigas e mais brigas: contra o rock, contra a MPB, contra o pop e, genericamente, contra o “mercado”. Assim, desenvolveu uma relação conflituosa com as instâncias desse mercado e também com representantes de outras práticas musicais.

Somente no fim da década de 1990 é que, ainda sem avançar muito no patamar hierárquico, o samba foi capaz de equilibrar a disputa com os critérios de modernidade, ocupando esferas significativas do mercado através de uma inédita diversidade estética no interior do próprio gênero. Aí as disputas migraram para dentro dele, numa acirrada discussão sobre os critérios de definição do gênero representada nos rótulos “samba de raiz” e “pagode romântico”. Tais transformações são reveladoras da dinâmica cultural da nossa música e da importância de um gênero que continua a levar alegria a “milhões de corações dos brasileiros”.

Felipe Trotta é mestre em musicologia pela Uni-Rio, doutorando em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de “Dinheiro e solidão no Pecado Capital de Paulinho da Viola" In: Ao encontro da Palavra Cantada. (7Letras, 2001). É também músico, violonista e arranjador.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

Jeanne-Antoinette Poisson: A amante da França


Jeanne-Antoinette Poisson: A amante da França
Ela era apenas uma jovem burguesa, mas usou asedução para conquistar um lugar entre os nobres.Companheira preferida do rei Luís XV, Madame de Pompadour se tornou decisiva na política francesa
 Manuela Aquino
Madame Lebon, famosa cartomante parisiense do século 18, não teve dúvidas ao ler a sorte da pequena Jeanne-Antoinette Poisson: um dia, ela seria amante do rei Luís XV. A previsão teve efeito imediato sobre Louise-Madeleine de La Motte, a mãe da menina de 9 anos. A partir daquele dia, ela fez de tudo para que a filha virasse a preferida do monarca. Longe de representar uma desonra, ser amante do rei era conquistar um posto nos mais seletos círculos da nobreza. Mas a tarefa não parecia nada fácil. Enquanto Jeanne-Antoinette era só uma criança, o rei já estava casado com a polonesa Maria Leczinska e tinha cinco filhos – em termos de alpinismo social, fisgá-lo era como alcançar o Everest. Anos depois, entretanto, a profecia se realizaria. E a jovem, já rebatizada como Madame de Pompadour, seria capaz inclusive de influir nos rumos da política francesa.

Jeanne-Antoinette nasceu em 29 de dezembro de 1721, em Paris, numa remediada família burguesa. Era filha de Louise-Madeleine e François Poisson. O pai trabalhava para um influente servidor do governo, Pâris-Duverney, responsável por abastecer o exército francês com suprimentos. A mãe era uma dona-de-casa dedicada, mas passava muito tempo longe do marido, que viajava muito a trabalho. Segundo boatos que circulavam pela cidade, o verdadeiro pai da menina era o rico viúvo Charles Lenormand de Tournehem, coletor de impostos e diretor da empresa mercantilista Companhia das Índias. Fato é que, em 1725, François teve que fugir da França, acusado de sonegar impostos. Tournehem, que acompanhava Jeanne-Antoinette de perto desde o nascimento, passou também a patrocinar os estudos da menina na ausência do pai. Aulas de canto, cravo e recitação incrementaram seu currículo.

Quando François Poisson retornou à França, perdoado pelas autoridades, sua filha já tinha 15 anos. O objetivo de se tornar amante do rei não era mais apenas um desvario da mãe, apoiada por Tournehem: tinha se tornado uma meta também para a jovem Jeanne-Antoinette. Conforme amadurecia, ficava evidente que sua aparência serviria àquele propósito: alta, cabelos castanhos lisos, pele sedosa, olhos brilhantes e profundos. Outro traço que a fazia chamar muita atenção eram seus dentes perfeitos – uma raridade na época.

Aos 18 anos, Jeanne-Antoinette era conhecida por sua elegância, sofisticação e beleza. Mas, enquanto o dia de conhecer o rei não chegava, ela tinha que se casar com alguém – sob pena de ver cair sobre si a pecha de solteirona. Como era plebéia e não tinha um dote grande o suficiente para atrair um noivo da nobreza, suas opções ficavam bastante reduzidas. Mais uma vez, Tournehem entrou em ação: a jovem se casou com o sobrinho e único herdeiro dele, o coletor de impostos Charles-Guillaume Lenormand. Se de fato era filha de Tournehem, Jeanne-Antoinette estava assim se casando com seu primo – o que não era incomum naquele tempo.

Logo após o matrimônio, em 1741, a jovem passou a ser conhecida como Madame d’Etioles, numa referência à propriedade onde foi morar com o marido. Era uma elegante casa a poucos quilômetros de Paris, às margens do rio Sena (tudo bancado por Tournehem). Longe de qualquer romantismo, o casamento garantia à jovem um nome razoavelmente pomposo e a chance de começar a freqüentar os salões da nobreza. E Etioles era especialmente interessante aos propósitos de Jeanne-Antoinette, pois ficava muito próxima do Castelo de Choisy, que pertencia a Luís XV. O rei ia para lá todo mês de agosto, para uma visita anual de outono.

Os primeiros encontros entre Jeanne-Antoinette e o monarca ocorreram justamente na região de Choisy, onde, depois de casada, ela costumava passear com sua mãe e Tournehem. Ao cruzar vez por outra com a comitiva real, a jovem percebia que era notada por Luís XV, mas o contato era apenas visual. Nascido em 1710, o rei assumiu o trono em 1723, quando já estava noivo da princesa polonesa Maria Leczinska, sete anos mais velha, com quem se casou pouco tempo depois. Após o nascimento de sua primeira filha, Luís XV iniciou a tradição de sempre ter amantes. Em 1742, ano em que viu Jeanne-Antoinette pela primeira vez, sua preferida era Marie-Anne de Châteauroux, que morreu em dezembro de 1744. Isso abria caminho para outra amante oficial – sim, elas eram reconhecidas como tal pela corte e mesmo pela rainha.

A aproximação entre Jeanne-Antoinette e Luís XV foi recheada de politicagem. Naquela época, a França estava em guerra contra a Áustria e a Grã-Bretanha. Poder influir nas decisões militares do país era um grande negócio para o fornecedor do exército Pâris-Duverney e para seu irmão, Pâris de Montmartel, banqueiro e padrinho de Jeanne-Antoinette. Eles perceberam que colocá-la no lugar da falecida amante era a oportunidade de que precisavam: o soberano era muito indeciso, e suas companheiras de alcova eram capazes de influenciá-lo politicamente. Chegava o momento para o qual a jovem tinha sido preparada a vida toda. Restava afastá-la do marido, que não tinha sido mais que um mero trampolim. O sempre presente Tournehem não hesitou fazer com que seu sobrinho fosse enviado a uma viagem de negócios, deixando sua esposa livre para ir ter com Luís XV.

Investida real

Não se sabe quando Jeanne-Antoinette e o rei foram apresentados pela primeira vez. Aparentemente, isso ocorreu no início de 1745 – pode ter sido, por exemplo, numa audiência conseguida pelos irmãos Pâris. Mas não há dúvida de que, uma vez dada a chance de seduzir o monarca, a jovem não a desperdiçou. Em 8 de fevereiro daquele ano, o duque de Luynes, cronista da corte, já se referia à nova conquista de Luís XV: uma “bela desconhecida”, com quem ele tinha sido visto dançando em bailes de máscaras. Já em 10 de março, o mesmo cronista informava o nome da jovem, Madame d’Etioles, e confirmava que, embora muito bonita, ela não tinha origem nobre. Isso teoricamente a impediria de ser oficializada como amante – na visão da alta sociedade que acompanhava o desenrolar dos fatos, aquilo poderia render, no máximo, um affair passageiro.

Mas, em pouco tempo, Jeanne-Antoinette recebeu um cômodo para si no imponente palácio de Versalhes, nas cercanias de Paris, onde residia a realeza. Era uma pequena suíte, estrategicamente posicionada perto dos petits cabinets – pequenos aposentos que o rei compartilhava com amigos íntimos. Em 27 de abril, o cronista Luynes foi obrigado a reconhecer: “Dizem que ela está loucamente apaixonada pelo rei e que essa paixão é recíproca”. Ao marido legítimo, restou um recado dado pelo tio, Tournehem (o mesmo que um dia tinha patrocinado o casamento), dizendo que não restava a ele outra opção senão se separar da mulher.

Um primeiro traço da grande influência de Jeanne-Antoinette sobre o rei pode ser reconhecido na rapidez com que ela foi declarada sua amante oficial. Antes de mais nada, era necessário encontrar um título de nobreza que ela pudesse ostentar na corte. O escolhido foi marquesa de Pompadour, referente a uma propriedade que não tinha posse definida naquela época. Em setembro de 1745, ela finalmente foi nomeada, cumprindo a profecia feita 15 anos antes. Jeanne-Antoinette tinha um novo nome e uma nova posição social. E se eternizaria na nobreza francesa como Madame de Pompadour.

Na condição de amante oficial, ela teve que aprender a etiqueta e o protocolo necessários para viver no castelo. E, apesar de ser vista com olhares tortos por alguns, já que não tinha ascendência nobre, Pompadour conquistou um amigo e tanto: o eminente filósofoVoltaire, que a ajudou em sua instrução literária. “A França era o centro do Iluminismo, que pregava reformas no regime absolutista”, diz Modesto Florenzano, professor de História Moderna da Universidade de São Paulo. “Mesmo assim, os pensadores freqüentavam os palácios com todas as regalias.”

Em Versalhes, Maria Leczinska, a rainha, estava acostumada a ficar em segundo plano, diante da infidelidade do monarca. Na medida do possível, ela ignorava Pompadour. Já o filho Luís, herdeiro do trono, vivia isolado e maldizendo membros da corte (segundo o livro Madame de Pompadour, de Christine Algrant, ele se referia à nova amante do pai como maman putain – algo como “mamãe prostituta”). Diante dessas figuras inexpressivas, Pompadour conquistou seu espaço. O duque de Croÿ, que costumava passar semanas em Versalhes, relatou o que vira por lá no fim de 1747: “Praticamente nenhuma graça era concedida sem a participação dela, o que levava a corte inteira à sua presença como se ela fosse o primeiro-ministro”.

Entre os opositores declarados de Pompadour estava o duque de Richelieu, que cobiçava o cargo de primeiro-ministro. “A nobreza francesa nessa época se caracterizava pelas intrigas e pequenas conspirações em busca de poder”, afirma Florenzano. Mal sabia o duque que a nova preferida do rei tinha o poder de influenciar não só na decoração de Versalhes, mas também em decisões políticas importantes. Pompadour tratou de dizer a Luís XV o quanto se irritava com a presença de Richelieu. Como resultado, ele foi rapidamente dispensado do convívio real.

Percebendo sua influência sobre Luís XV, Pompadour começou a se interessar cada vez mais por questões diplomáticas. Assim, conseguiu estabelecer um laço com o rei que não fosse apenas baseado no sexo: tornou-se uma conselheira de primeira hora. “Ela tinha influência sobre o rei porque era uma das únicas pessoas em quem ele confiava”, afirma Christine Algrant. “Apesar de ela mesma se definir como fria na cama, ele gostava muito da companhia dela.”

Mas o ápice da demonstração do poder de Pompadour estava por vir. Em fevereiro de 1756, Luís XV a nomeou dama de companhia da rainha – que, por mais constrangida que estivesse, foi obrigada a aceitar o fato. Esse era o posto mais prestigioso que as francesas podiam conquistar, reservado só a nobres da mais alta estirpe. Com sua posição social consolidada, Pompadour preparava sua grande jogada política. No mesmo ano, foi assinado o Tratado de Versalhes, no qual as antigas inimigas França e Áustria se comprometeram a ficar uma ao lado da outra contra qualquer outra aliança, a não ser que o conflito fosse entre França e Grã-Bretanha. Por trás disso estava o dedo da amante, que vivia um momento de admiração e paparicos mútuos por Maria Tereza, rainha da Hungria e arquiduquesa da Áustria. “A decisão final foi feita pelo rei, mas Pompadour o influenciou num episódio que culminou numa guerra desastrosa para a França”, diz Christine.

Embora o tratado parecesse ser garantia de paz duradoura, logo após sua assinatura, Maria Tereza enviou suas tropas para a fronteira com a Silésia, território que havia sido tomado pelos prussianos na década anterior. O rei Frederico da Prússia, exímio estrategista militar, resolveu então confrontar a Áustria. Luís XV ficou espantado com a atitude prussiana e ficou sem alternativa a não ser socorrer Maria Tereza. Estava iniciada a Guerra dos Sete Anos, em que as forças franco-austríacas acabaram derrotadas. O conflito também acabou opondo a França à Grã-Bretanha (aliada da Prússia) e, quando terminou, fez com que os franceses perdessem para os britânicos boa parte de suas posses na América do Norte e na Índia.

Durante o conflito, Pompadour chegou até mesmo a indicar generais (ao mesmo tempo em que tentava se livrar das novas amantes do rei, que passara a procurar moças mais jovens que ela). Depois do fim da guerra, em 1763, sentindo-se culpada pelo fracasso militar, Pompadour adoeceu e sua saúde se tornou frágil. Tinha uma respiração difícil e vivia com dores de cabeça e febre. Um ano depois, aos 42 anos, após ficar um mês de cama, ela morreu. Foi enterrada ao lado da mãe, na cripta do Convento do Capuchinhos, em Paris. O rei assistiu discretamente ao cortejo e mostrou sua dor apenas aos criados mais próximos, derramando algumas lágrimas. Com a morte, os bens de Pompadour foram tirados do palácio e guardados em depósitos na capital parisiense. Não acumulou muita riqueza. Em seu testamento deixou pequenas jóias aos amigos. E não se esqueceu de quem deu o pontapé inicial a sua trajetória: a cartomante Madame Lebon foi agraciada com uma boa soma em dinheiro.



O amor e o poderTrês outros exemplos de mulheresque se tornaram muito influentes após conquistar o coração de grandes líderes
A carismática

Caso clássico de mulher que sobe na vida depois de conhecer – e agradar – um homem poderoso, Maria Eva Duarte nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1919. Pobre, Evita sonhava com o estrelato. Depois de atuar como figurante de cinema, foi trabalhar no rádio como atriz e cantora. Nessa época conheceu Juan Domingo Perón. Virou sua amante, mas só trocou o rádio pela política quando Perón foi preso, em 1944, por sua oposição ao governo vigente. A moça organizou comícios para que ele fosse libertado. Dois anos depois, quando Perón se tornou presidente, ela não se conteve em ser primeira-dama. Fundou o Partido Feminista Peronista e fez campanha para aumentar o salário mínimo, além de se engajar em obras sociais.

A impiedosa

Jiang Qing viu no casamento com Mao Tsé-tung a chance de exercer poder e dar vazão a toda sua ambição. A chinesa, filha de uma prostituta, fugiu de casa para estudar e se filiou ao Partido Comunista Chinês, do qual Mao já era um dos líderes, em 1933. Ela o conheceu pessoalmente em Xangai e, em 1939, se tornou sua terceira mulher. Dez anos depois, com a vitória da revolução e a subida de Mao ao poder, ela foi nomeada ministra da Cultura e passou a ser uma das pessoas mais influentes do país. Tinha permissão de seu marido para fazer o que quisesse. Ganhou o apelido de “demônio de ossos brancos”, pela perseguição implacável contra seus inimigos durante a Revolução Cultural, nos anos 60.

A benevolente

Até na Bíblia há um exemplo de como a lábia feminina é capaz de dominar um homem: a história de Ester, mulher do rei Assuero, monarca que governava territórios que iam da Índia à Etiópia. O segundo em comando no reino era Haman, diante do qual todos se curvavam. O único que não o apoiava era Mordechai, pai de criação de Ester, nascido em Jerusalém. Isso despertou o ódio de Haman contra os judeus. Alegando que esse povo não respeitava o soberano, ele conseguiu de Assuero uma ordem para matar todos os judeus em um único dia. Perto da data marcada, a ordem foi revogada, graças a um pedido especial da rainha. O monarca sucumbiu aos encantos de sua esposa, cuja beleza não cansava de exaltar.


Saiba mais
Livro

Madame de Pompadour: Senhora da França, Christine Pevitt Algrant, Objetiva, 2005 - A autora cita vários textos da época para reconstituir a ascensão de Pompadour, as intrigas da corte e a vida da nobreza na França do século 18.

Revista Aventuras na Historia

Almofadinhas e malandros

O Bide
Almofadinhas e malandros
No começo do século XX, o samba nascia com o jeito comportado de compositores respeitáveis que dariam lugar a uma geração ligada à boemia, improviso e malandragem
Santuza Cambraia Naves
Foi numa roda de amigos que o sapateiro Alcebíades Barcelos, o Bide, e seus companheiros do Estácio, bairro do centro do Rio de Janeiro, criaram a primeira escola de samba do país, a Deixa Falar. Era um domingo: 12 de agosto de 1928.

O tempo dos sambas maxixados, da década anterior, ficara para trás. Novidades musicais e no comportamento dos sambistas davam nova feição a esse mundo musical carioca. A casa da tia Ciata, localizada no Centro da cidade, embalada por um samba que atendia às convenções da dança de salão e freqüentada por figuras de destaque como Donga e Sinhô, dava lugar a novos cenários: os botequins da subida do morro de São Carlos, por exemplo. O samba tocado nesses lugares tinha uma nova cadência, que se ajustava à coreografia das escolas de samba recém-instituídas nas favelas cariocas do Estácio e da Mangueira. Outra diferença importante: o novo samba era criado na base do improviso das rodas de batucada, com tamborim, surdo, cuíca e pandeiro – enquanto o samba da geração anterior, dos anos 1910, era desenvolvido por músicos com maior formação técnica e se fazia a partir de um processo de composição mais elaborado, com instrumentos de corda e sopro. Já os sambistas do morro, quando recorriam ao violão, o faziam sem aprimoramento técnico, apostando no dom e na intuição.

As diferenças entre os sambistas da primeira e segunda gerações também são claramente percebidas nas letras das composições. Era comum nas criações de Donga, por exemplo, a mistura de situações rurais e urbanas. Pelo telefone – primeira composição registrada como samba, em 1916 – é um bom exemplo. O estribilho, ou refrão, trazia motivos regionais – “Olha a rolinha/Sinhô, Sinhô, se embaraçou/ Sinhô, Sinhô/Caiu no laço do nosso amor” –, enquanto o restante da letra recorria a uma típica linguagem carioca para descrever uma situação de intervenção policial em ambiente de jogatina – “O chefe da polícia/ pelo telefone/ veio me avisar”. Essas letras chegam a parecer ingênuas, se comparadas com a maneira como os sambistas do morro, uma década depois, discorrem sobre a sua condição de favelados e a sua experiência periférica, à margem da sociedade e dos códigos convencionais de boa conduta.


Com relação ao comportamento, enfatiza-se, de maneira geral, o surgimento de uma nova atitude entre os sambistas do final dos anos 1920, notadamente os do Estácio. Assim, de acordo com diversas narrativas, se as duas modalidades de samba – a dos anos 1910 e a do final da década de 1920 – se criam sem dúvida a partir dos elementos da cultura negra, uma e outra geração lidariam com a herança africana de maneiras diferentes. Os músicos das comunidades baianas da Cidade Nova e adjacências tenderiam a adotar um estilo de vida pequeno-burguês, na medida em que eram orientados por um ideal de respeitabilidade. Tia Ciata, casada com um funcionário público ligado à polícia, tem a sua casa descrita não apenas como um abrigo de sambistas e chorões, mas também como um espaço que reunia pessoas importantes da vida política. Sinhô, um dos freqüentadores da casa, é sempre mencionado como alguém que aspirava a uma posição superior na hierarquia social. Assim, na condição de pianista do refinado Clube Flor do Abacate, no Catete, teria se vinculado a figuras de destaque nos mundos das letras e da política.

Os sambistas surgidos nos anos 1920, ao contrário, pouco afeitos a modelos burgueses, se ligavam sobretudo a redutos da boemia e ao cotidiano das populações faveladas. Essa condição de classe provavelmente explicaria a sua maneira mais rudimentar de fazer samba, recorrendo muito ao improviso e a técnicas “primitivas”, se comparadas às desenvolvidas por sambistas e chorões, como Donga, Sinhô e Pixinguinha. A própria temática era diferente daquela dos compositores da geração anterior, e aparecia focada em situações de “orgia”, “malandragem” ou “vadiagem”.

Um bom exemplo de composição afinada com os valores boêmios é A malandragem, samba de estréia de Bide, integrante da primeira geração de músicos do Estácio. A letra deste samba (gravado por Francisco Alves em 1927) consiste na fala irônica de um malandro anunciando que está prestes a abandonar a vida de orgia e virar “almofadinha”. É interessante observar que, se o personagem do malandro já era familiar na literatura brasileira desde o século XIX e também no samba desenvolvido pelos compositores cariocas dos anos 1910, é a partir do final da década de 1920 que “malandro” se torna sinônimo de “sambista”. E o lugar por excelência da prática da malandragem, segundo a maioria dos pesquisadores, seria o morro do Estácio, que abrigava sambistas importantes como os irmãos Alcebíades (Bide) e Rubens Barcelos, Ismael Silva, Nílton Bastos, Baiaco e Brancura.


As narrativas sobre a constituição da identidade de sambista, nos anos 1920, descrevem o personagem não apenas como uma espécie de subempregado, mas também como “malandro”, “biscateiro” e “proxeneta”. A proximidade do Estácio com a zona de prostituição do Mangue teria em muito contribuído para a sobrevivência dos seus compositores, que se reuniriam nos bares fronteiriços entre a zona de meretrício e o largo do Estácio, local que lhes permitia não só explorar o jogo e a prostituição como também se dedicar à criação de sambas. Bide, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, refere-se a uma sinuca da praça Tiradentes, bastante freqüentada por ele e outros sambistas, e descreve também a maneira improvisada de se fazer os sambas nos botequins, onde as melodias saíam “de cabeça”. O sambista, nesse universo, era um dublê de compositor e valentão, apto para a prática de capoeira e habituado ao porte de armas. Bide é também recorrentemente citado como criador de novos parâmetros para o samba, além de inventor não só de novos instrumentos – o surdo, fundamental para a marcação do ritmo do desfile – como do ofício de instrumentista. Bide e Marçal (outro músico importante do Estácio) tornaram-se parceiros constantes e, dentre várias de suas composições, destaca-se Agora é cinza, gravado originalmente por Mário Reis em 1933.

Ismael Silva é outro compositor do Estácio que, de acordo com os relatos, só se ocupava com samba e jogo de cartas. E tanto Ismael quanto Bide desenvolveram, desde o início de suas carreiras, a temática da malandragem. Ismael Silva se consagrou, por exemplo, ao utilizar esta temática na letra que escreveu para a composição Se você jurar, de 1931, em parceria com Francisco Alves e Nilton Bastos. A letra tem início com o seguinte recado do sambista para a sua musa: “Se você jurar/que me tem amor/Eu posso me regenerar/Mas se é/para fingir, mulher/A orgia assim não vou deixar”.

Bide, por sua vez, compõe a figura do malandro no próprio corpo, ao se vestir com os indefectíveis terno branco e colarinho engomado. No caso de Cartola (Angenor de Oliveira), da Mangueira, o próprio apelido se refere a seus trajes – mais precisamente ao chapéu que usava e que constituía peça indispensável do figurino malandro. Aliás, entende-se melhor o tipo de indumentária do malandro quando se leva em conta que, ao mesmo tempo que sinaliza uma busca de respeitabilidade, ao copiar o modelo universal do terno burguês, ela traduz a opção pelo inverso da condição burguesa, já que o uso da cor branca marca a diferença. Cartola, em suas narrativas, fala sobre o universo boêmio da Mangueira do final dos anos 1920 e refere-se à existência, na época, de dois tipos de blocos: os de “sujo”, dos quais fazia parte, e os familiares, aos quais o acesso lhe era interditado.


Quanto ao estilo musical desenvolvido por essa segunda geração de sambistas, é curioso observar que, apesar da linguagem debochada da temática malandra, se iniciaram, a partir do final dos anos 1920, os contatos entre as favelas e a cidade. Noel Rosa é sempre citado como um mediador entre os compositores pobres das periferias e os músicos cariocas de classes média e alta. Noel teria sido um dos primeiros músicos desse segmento branco e de classe média a subir os morros, como o da Mangueira e o do Estácio, e conviver com os sambistas desses redutos. Os sambistas do morro, em seus relatos, costumam reclamar da exploração a que foram submetidos no início de suas carreiras por compositores e intérpretes já conhecidos, como Francisco Alves e Mário Reis, que negociavam com eles a parceria de suas músicas. A despeito dessas situações difíceis na trajetória de compositores como Bide e Cartola, é a partir do final dos anos 1920 que o samba produzido nos morros começou a ser valorizado e apreciado por segmentos das classes alta e média da cidade.

Com a criação dos desfiles carnavalescos, os sambistas desceram do morro e começaram a fazer as evoluções na avenida. O samba passou então a contar com um público cada vez mais heterogêneo, que o consumia não só nos espetáculos dos desfiles, mas através dos novos meios de comunicação de massa, como o rádio, a indústria fonográfica tecnicamente aperfeiçoada e o cinema. A partir dessas transformações, o Carnaval permitiu a aproximação do que era considerado “alta” e “baixa” cultura. Em 1929, por exemplo, sob a promoção da revista O Cruzeiro, vários músicos eruditos – como Luciano Gallet e Lorenzo Fernandes – e escritores da Academia Brasileira de Letras – Adelmar Tavares, Humberto de Campos e Olegário Mariano – se reuniram para premiar as melhores composições para o Carnaval do ano seguinte. Jaime Ovalle, poeta e compositor bissexto ligado aos intelectuais modernistas, atuou como secretário do evento.

Com Getúlio Vargas no poder, a partir de 1930, o Estado passou a intervir nas festividades carnavalescas e nas manifestações musicais populares em geral. Em 1932, Pedro Ernesto, então prefeito do Rio de Janeiro, concedeu subvenções aos blocos, sociedades e escolas de samba. A escola Deixa Falar apresentou-se em desfile promovido pelo Jornal do Brasil com o enredo “A primavera e a Revolução de Outubro”, numa alusão nítida aos acontecimentos políticos de 1930. Tudo indica que um “namoro” entre Vargas e o Carnaval carioca teria começado a partir desses acontecimentos, até porque cantores populares, como Mário Reis e os integrantes do Bando da Lua, costumavam freqüentar as recepções promovidas por Vargas no Palácio Guanabara. E pessoas ligadas à vida intelectual mantiveram o seu interesse pelos desfiles carnavalescos na década de 1930, como Nássara e Orestes Barbosa, que divulgavam o evento através do jornal Mundo Sportivo.


É justamente na década de 1930, marcada pela ascensão de Vargas ao poder e pela afirmação do modernismo, que o samba se transformou em símbolo nacional. Houve nesse momento uma inversão do ideário de construção da identidade nacional concebido na década anterior, como o desenvolvido por Mário de Andrade no Ensaio sobre a música brasileira, de 1928. Nesse texto-manifesto, Mário propunha a contribuição das musicalidades de todas as regiões e etnias do país para o estabelecimento da identidade nacional. Fundamentando-se nessa perspectiva, defendia radicalmente a representação do Brasil através da síntese promovida pelas três raças – portuguesa, negra e indígena –, recusando o procedimento de pensar o país a partir de um único elemento, tanto cultural quanto geográfico. Ao contrário, portanto, da proposta de Mário de Andrade, que operava com a idéia de fusão, a inteligência dos anos 1930 optou por concentrar no Rio de Janeiro a escolha dos ingredientes básicos para a construção da identidade nacional, entre os quais o samba se destaca pelo seu valor emblemático. Em reflexão bastante original sobre o tema, desenvolvida em O mistério do samba, Hermano Vianna argumenta que, nos anos 1930, se recorre ao mito da “descoberta” do samba, como se de certa forma o morro contivesse o samba em essência. Assim, não só o samba como também o Brasil passam a ostentar uma natureza carnavalesca.

E, curiosamente, tomou-se como símbolo nacional uma musicalidade que, para os padrões modernistas da década anterior – que apostava numa estética mais elaborada, como a de Villa-Lobos –, se caracterizava por uma extrema simplicidade. Só no final da década o samba deixou de ser valorizado em sua “naturalidade”, pois o gênero começou a sofrer uma série de desenvolvimentos, responsáveis, em grande medida, pelo surgimento do samba cívico, ou samba-exaltação. Essa nova modalidade de samba se projetou com muita força, num viés mais sinfônico e monumental, a partir de Aquarela do Brasil, que Ari Barroso compôs em 1939. Seria uma das diversas mudanças experimentadas pelo gênero em sua trajetória ao longo do tempo

Santuza Cambraia Naves é professora do departamento de sociologia e política da PUC- Rio e pesquisadora do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade Candido Mendes.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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