quarta-feira, 31 de outubro de 2018

HITLER, MUSSOLINI E O PAPA

O silêncio do Vaticano e os sussurros do Duce diante da ascensão do Führer
DAVID I. KERTZER


Em 1933, Hitler criou uma lei demitindo os judeus do serviço público. Informado, o pontífice foi aconselhado a não interferir e se calou. Curiosamente, foi Mussolini, e não Pio XI, que recomendou ao Führer que parasse com a perseguição
 FOTO: ULLSTEIN BILD_ULLSTEIN BILD VIA GETTY IMAGES

Enquanto Benito Mussolini exibia um busto de Napoleão em seu estúdio, Adolf Hitler, que se tornou chanceler da Alemanha em janeiro de 1933, mantinha, havia muito, um busto de Mussolini no seu. O Duce era, para ele, o exemplo a ser seguido. Pouco depois da cerimônia de posse, Hitler mandou uma mensagem ao italiano: fascismo e nazismo tinham muitas coisas em comum. Ele esperava fortalecer os laços entre a Itália e a Alemanha.

Mussolini gostava da adulação, mas tinha dúvidas sobre seu seguidor. Hitler era “um sonhador”, mais apto para fazer discursos inflamados do que para governar. Já Hermann Göring[1] era um “ex-paciente de manicômio”. Os dois, achava o Duce, sofriam de complexo de inferioridade.

“Hitler é um agitador simpático”, disse o cardeal Eugenio Pacelli,[2]“mas é cedo demais para dizer se é um homem de governo.”

Fazia muito tempo que chefes da Igreja alemã desconfiavam do extremo nacionalismo de Hitler, que para eles beirava o paganismo. Mas o líder nazista, ciente de que um em cada três alemães era católico, estava ansioso para conquistar o apoio do Vaticano. Assim como o Partido Popular católico havia atrapalhado os planos de Mussolini na Itália, o Partido do Centro Católico[3] atrapalhava as aspirações de Hitler na Alemanha. Menos de um mês depois que Hitler assumiu o poder, o embaixador alemão assegurou a Pacelli que o novo chanceler queria manter boas relações com a Santa Sé. Afinal, observou o embaixador, Hitler era católico.

O papa também tinha dúvidas sobre os nazistas. “Com os hitleristas no poder”, perguntou Pio XI na primavera anterior, “o que se pode esperar?” Mas, semanas após a nomeação do novo chanceler, o pontífice começou a vislumbrar alguma esperança. “Mudei de opinião sobre Hitler”, disse ele ao surpreso embaixador francês no começo de março. “É a primeira vez que uma voz de governo se ergue para denunciar o bolchevismo em termos tão categóricos, unindo-se à voz do papa.”

“Aquelas palavras”, recordou o embaixador francês François Charles-Roux, “pronunciadas com voz firme e uma espécie de arrebatamento, me mostraram como o novo chanceler alemão tinha atraído a atenção de Pio XI ao lançar uma declaração de guerra até a morte contra o comunismo.” O enviado da Grã-Bretanha no Vaticano também notou que o pontífice parecia obcecado com a ameaça comunista. Era impossível compreender as ações do papa, afirmou ele, sem levar isso em conta.

A opinião surpreendentemente positiva de Pio XI sobre Hitler produziu consternação e confusão entre os chefes da Igreja alemã. Na campanha para as eleições de março de 1933, os bispos alemães tinham sido unânimes ao denunciar os nazistas e apoiar vigorosamente o Partido do Centro. Em 12 de março, o papa teve um encontro com o cardeal Michael von Faulhaber, arcebispo de Munique, para lhe falar da necessidade de uma mudança de curso. Ao voltar à Alemanha, o arcebispo informou aos colegas: “Meditemos sobre as palavras do Santo Padre, que, num consistório, sem mencionar o seu nome, indicou Adolf Hitler perante o mundo inteiro como o estadista que primeiro, depois do próprio papa, ergueu a voz contra o bolchevismo.” Em 23 de março, o chanceler alemão retribuiu o apoio do papa declarando que as igrejas cristãs eram “os fatores mais importantes de preservação da nossa identidade nacional”. Comprometeu-se a proteger “a influência a que têm direito as confissões cristãs na escola e na educação”. Dois dias depois, falando com o cardeal Pacelli, Pio XI manifestou seu apreço pelo que Hitler dissera, elogiando suas “boas intenções”. No fim do mês, os bispos alemães anunciaram que já não se opunham ao líder nazista.

Em maio, Charles-Roux voltou a comentar a nova opinião positiva do papa sobre Hitler. “O pontífice, impulsivo por natureza e obcecado com sua fobia ao comunismo”, observou o embaixador francês, “permitiu-se um momento de entusiasmo” pelo líder nazista. Cientes da importância do apoio da Igreja, autoridades do governo italiano dividiram com homólogos nazistas suas próprias “receitas” de sucesso para obter a aprovação do Vaticano.

O papa estava ansioso para chegar a um acordo com o governo nazista que preservasse a influência da Igreja na Alemanha. O cardeal Pacelli, hábil negociador, via o Partido do Centro Católico como uma das principais moedas de troca da Santa Sé. Ele acreditava que, ao se oferecer para suspender o apoio ao partido, o Vaticano poderia obter garantias que protegessem os direitos de associações católicas na Alemanha. Mas não contava com o efeito abrupto que a retirada do apoio dos bispos teria sobre o Partido do Centro. Antes que Pacelli chegasse a um acordo com Hitler, o partido anunciou a própria dissolução.

Em julho, o cardeal conduziu o vice-chanceler alemão, Franz von Papen[4], até seu apartamento no Vaticano. A concordata que assinaram ali garantia à Igreja alemã o direito de cuidar dos próprios assuntos e oferecia proteções a padres, ordens religiosas e propriedades da Santa Sé. Contudo, boa parte da sua redação, em especial no que dizia respeito a associações e escolas católicas, era vaga.

Heinrich Brüning, líder do Partido do Centro que servira como chanceler da Alemanha de 1930 a 1932, ficou furioso. Esbravejou que o Vaticano tinha traído o partido católico e se aliara a Hitler. Responsabilizou o cardeal Pacelli, que, segundo ele, não compreendia a natureza do nazismo. A fé de Pacelli no “sistema de concordatas”, escreveria Brüning futuramente em suas memórias, “levou-o, e ao Vaticano, a desprezar a democracia e o sistema parlamentar”.

Opapa Pio XI logo percebeu que seu “pacto com o diabo” – como o historiador Hubert Wolf o descreveu – não traria os resultados esperados. Ao mesmo tempo que assinaram a concordata, os nazistas puseram em vigor a Lei para a Prevenção de Descendentes Hereditariamente Doentes, determinando a esterilização compulsória de pessoas consideradas defeituosas – em clara divergência com a doutrina católica. Hitler começou também a agir contra a densa rede de escolas paroquiais da Igreja. Os nazistas queriam uma Igreja que pudessem controlar por completo. No início do outono, a Secretaria de Estado produziu uma análise alarmante desses esforços, que incluía a letra de uma canção popular entre a Juventude Hitlerista que chamava Hitler de seu “redentor”. Em outubro, o editor do mais influente jornal católico da Itália, L’Avvenire d’Italia, advertiu que os nazistas trabalhavam por “uma igreja nacional alemã na qual protestantes e católicos serão misturados”. Em dezembro, no discurso de Natal que fazia todo ano aos cardeais, Pio XI manifestou seu desapontamento com o governo nazista. Pacelli e Von Papen tinham assinado a concordata apenas cinco meses antes.

Enquanto as dúvidas do papa sobre Hitler aumentavam, seus auxiliares mais próximos tentavam manter as relações tão harmoniosas quanto possível. No começo de 1934, tanto o cardeal Pacelli quanto o núncio na Alemanha, monsenhor Cesare Orsenigo, aconselharam o papa a não dizer nada que pudesse enfurecer Hitler, para não enfraquecer ainda mais a posição da Igreja. Em Berlim, Orsenigo recebeu ajuda em seus esforços, tendo conservado o assistente pessoal de Pacelli do seu tempo de núncio, o padre alemão Eduard Gehrmann. Como disse um observador do Vaticano, o padre Gehrmann “acreditava mais em Hitler do que em Cristo”.

O fato de Pio XI ter escolhido Cesare Orsenigo para ser núncio na Alemanha nazista revela muito sobre o papa. À exceção do núncio na Itália, não havia missão diplomática mais crucial e complexa no Vaticano, embora Orsenigo fosse um homem de inteligência limitada e visão de mundo ainda mais tacanha. Nascido perto da cidade natal do pontífice, na região do lago de Como, ao norte de Milão, Orsenigo, assim como Pio XI, tivera um pai supervisor de fábrica de seda. Seus dois tios paternos haviam se casado com as duas tias maternas, filhas do supervisor da fábrica de seda de uma cidade vizinha. Cada um dos três casais teve um filho que se tornou padre. Ordenado em 1896, Orsenigo serviu numa paróquia de Milão e, em 1912, acrescentou o título de cônego no domo de Milão.

Até então, Orsenigo vivera confinado aos limites da Igreja dentro e nos arredores de Milão; não tinha experiência diplomática nem qualquer interesse evidente em assuntos internacionais. Apesar disso, meros quatro meses após se tornar papa, Pio XI nomeou-o núncio na Holanda, com o título de arcebispo. A nomeação provocou muitos comentários entre o alto clero, que via naquilo mais um exemplo da preferência dada pelo pontífice aos seus amigos de Milão, em vez de escolher homens da hierarquia com mais experiência. O cardeal Gasparri[5] presidiu a cerimônia de consagração episcopal de Orsenigo; o padre milanês usava com orgulho a cruz que o pontífice lhe dera para honrar a ocasião, mas, à exceção de alguns alunos do Pontifício Seminário Lombardo em Roma, que serviram como coroinhas, a igreja estava vazia.

Depois de passar dois anos na Holanda, Orsenigo se tornou núncio na Hungria. Em 1928, enquanto ele estava em Roma para uma visita, um dos informantes de Mussolini conjecturou que o papa Pio XI talvez o escolhesse para substituir o cardeal Gasparri como secretário de Estado. Segundo o informante, o pontífice valorizava acima de tudo homens de lealdade inquestionável. A escolha seria uma dádiva para o regime, acrescentou o informante, pois Orsenigo era menos astuto e mais maleável do que o voluntarioso Gasparri.

Embora tenha passado batido por Orsenigo para o cargo de secretário de Estado, o papa Pio XI o escolheu para substituir Pacelli como núncio na Alemanha. Tanto Hitler quanto o cardeal Pacelli viriam a considerar Orsenigo pouco importante. Sem dúvida Pacelli nunca sentira necessidade de pedir conselhos para lidar com Berlim. Prudente e escrupuloso, vivia com medo de ofender Hitler. Mais adiante, quando as relações com a Alemanha nazista se tornaram sua preocupação central, Pio xi não substituiria Orsenigo. O papa não queria um pensador independente, nem um homem belicoso, como seu embaixador no país de Hitler. O medíocre Orsenigo permaneceria no cargo, sob o comando do papa seguinte, durante todos os dramáticos anos da Segunda Guerra Mundial.

Preocupado com elementos anticatólicos no movimento nazista, Pio XI ficou especialmente aborrecido com Der Mythus des 20 Jahrhunderts [O Mito do Século XX], escrito por Alfred Rosenberg, o mais importante teórico nazista. No livro, Rosenberg afirmava que Deus criou os humanos como raças separadas; a superior raça ariana estava destinada a governar as outras. Jesus era ariano, explicava ele, mas os apóstolos judeus tinham poluído seus ensinamentos. O catolicismo era o produto corrompido dessa influência judaica. No começo de 1934, o Santo Ofício incluiu esse best-seller alemão no Índice de Livros Proibidos. O próprio Hitler manteve certa distância da publicação, e, dessa forma, algumas pessoas na Santa Sé puderam atribuir a tendência anticatólica dos nazistas não ao Führer, mas à ala anticlerical do partido. Era uma prática bem conhecida no Vaticano, onde ações contra a Igreja na Itália costumavam ser atribuídas não a Mussolini, mas aos anticlericais que o cercavam.

Em seus esforços para convencer Hitler a honrar a concordata, Pio XI pediu ajuda ao Duce incontáveis vezes. Na primavera de 1934, quando Mussolini se preparava para seu primeiro encontro com Hitler, o papa lhe enviou instruções. Queria que o italiano arrancasse do Führer garantias de que ele respeitaria a concordata. Embora o acordo estivesse em vigor havia menos de um ano, os nazistas já o ignoravam. Mussolini deveria transmitir também um alerta: seria melhor que Hitler não intimidasse os bispos da Alemanha, pois, “embora pudessem lhe fazer um grande bem, também podiam – embora não o desejassem – fazer-lhe muito mal, uma vez que os católicos tomariam partido deles”.

Pio XI também pediu ao Duce que convencesse Hitler a “se livrar de certos acólitos que prejudicavam sua imagem”, em especial Alfred Rosenberg e Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda. O papa acreditava que ambos incentivavam ataques à Igreja Católica. O arcebispo de Munique, cardeal Faulhaber, preparara pouco tempo antes um relatório perturbador sobre Goebbels, cujos escritos, incluindo um romance popular de sua autoria que datava dos anos 20, combinavam uma forte crença em Deus e Jesus Cristo com desdém pela Igreja e pelo clero. “Converso com Cristo”, escreveu Goebbels em seu livro. “Achei que o tinha vencido, mas só venci mesmo seus padres idólatras e falsos servidores. Cristo é duro e implacável.” Para piorar, o católico Goebbels se casara pouco tempo antes com uma divorciada protestante e era, segundo o arcebispo, “um notório homossexual”. Ao receber o pedido do papa Pio XI, o Duce ficou feliz de poder desempenhar o papel de estadista sábio e prometeu atender a todos os desejos do pontífice.

Mussolini não estava tão ávido pelo encontro. O objetivo nazista de criar uma Grande Alemanha, unindo todos os povos de etnia alemã, significava de maneira inevitável que eles tentariam anexar a Áustria. Isso ia em direção oposta à política externa da Itália, que via a nação como parte da esfera de influência italiana e um para-choque contra uma Alemanha extremamente agressiva.[6] Mussolini era partidário convicto de Engelbert Dollfuss, o chefe social-cristão do governo austríaco, que suspendera o parlamentarismo em março de 1933 em resposta à agitação provocada pelos nazistas. Naquele verão, Dollfuss, com a mulher e os filhos a tiracolo, visitara Mussolini em seu refúgio de verão em Riccione, na costa adriática da Romanha, para lhe pedir ajuda. Pouco depois de Dollfuss voltar para Viena, um nazista austríaco atirou nele, baleando-o no braço e nas costelas.

O Führer desembarcou no aeroporto de Veneza na manhã de 14 de junho de 1934, onde o bronzeado Duce o recebeu. Mussolini usava um magnífico uniforme com pencas de medalhas no peito, um fez fascista preto, um punhal enfiado no cinto e botas pretas até os joelhos. Hitler usava uma capa amarela, chapéu de aba mole de veludo marrom, terno escuro e sapatos pretos comuns. Parecia, segundo um observador, “um trabalhador em seu traje de domingo”. O pálido alemão sofreria muito em comparação com o viril Mussolini, que se deliciava em desnudar o peito numa infindável variedade de poses. Hitler jamais se deixava ser visto sem estar inteiramente vestido e, mesmo durante sua passagem pela prisão nos anos 20, insistia em usar gravata todos os dias. Enquanto o Duce adorava dirigir carros velozes e pilotar aviões, o Führer preferia se sentar no banco detrás de sua imensa Mercedes, cercado por guarda-costas, parecendo, nas palavras do biógrafo Ian Kershaw, “um gângster excêntrico”.

Ao sair do avião, Hitler estava claramente constrangido. O confiante Mussolini andou a passos largos até ele e levantou o braço na saudação nazista. Correria depois o boato de que, quando o Führer o saudou em resposta, o Duce murmurou Ave imitatore! [Ave, imitador!]. A impressão causada por Hitler alimentaria em Mussolini a sensação de estar lidando com uma cópia barata do original, sensação essa que, mais à frente, se revelaria perigosa.

Orgulhoso de seu domínio da língua alemã, o Duce insistiu em ficar a sós com Hitler. Tinha até tomado aulas para melhorar a fluência nas semanas anteriores ao encontro. Mas Mussolini teve dificuldade para acompanhar as longas tiradas de Hitler, tanto pelo tédio que provocavam quanto por limitações linguísticas. Sua crença em que o Führer era um tanto maluco só fez aumentar nos dois dias seguintes. O encontro não foi ajudado pela infestação de mosquitos, descritos como “do tamanho de codornas”, nem pelo alarde que Hitler fazia da superioridade da raça nórdica em comparação às origens parcialmente “negroides” dos europeus meridionais. A maior fonte de tensão continuava sendo a Áustria, pois Hitler não fazia segredo da sua intenção de uni-la à Alemanha.

“Que palhaço!”, disse Mussolini quando o avião do Führer decolou. O homem se gabara da superioridade da raça alemã. Mas, como o Duce adorava contar para plateias italianas, enquanto homens como César, Cícero, Virgílio e Augusto adornavam os magníficos palácios de Roma, os selvagens analfabetos que foram ancestrais dos nazistas viviam em imundas cabanas no mato.

Depois do encontro em Veneza, Mussolini escreveu ao seu embaixador na Santa Sé, Cesare de Vecchi, para colocá-lo a par das novidades: “Vou poupá-lo de todas as idiotices que Hitler disse sobre Jesus Cristo ser da raça judia etc.” Quando o chanceler alemão falara sobre a Igreja Católica, disse Mussolini a De Vecchi poucos dias depois, “era como se tivesse preparado um disco fonográfico sobre o assunto e o tocasse durante dez minutos, até o fim”. Hitler fizera um discurso inflamado dizendo que a Igreja não passava de uma das mistificações dos judeus. “Esse judeu”, disse o Führer, referindo-se a Jesus Cristo, descobrira um jeito de enganar todo o mundo ocidental. “Ainda bem”, disse ele a Mussolini, “que vocês (os italianos) conseguiram injetar mais do que uma pequena dose de paganismo (na Igreja Católica), fazendo de Roma o seu centro e usando-a para seus próprios fins.” Hitler acrescentou que, embora fosse católico, não conseguia ver nenhum benefício trazido pelo catolicismo à Alemanha.

Mussolini não contou nada disso ao papa, a não ser por uma vaga alusão à sciocchézza, bobagem, que Hitler dissera sobre Jesus ser judeu. Com receio de que as coisas piorassem caso o pontífice soubesse o que o Führer falara, o Duce apresentou a De Vecchi uma versão expurgada da conversa a ser usada com o Vaticano. Ele deveria dizer a Pio XI que fizera o melhor possível e que, no futuro, talvez pudesse induzir o líder nazista a adotar uma opinião mais conciliatória.

Um mês depois, nazistas armados, vestindo uniformes do Exército austríaco, invadiram o gabinete do chanceler Dollfuss e o mataram. No começo do dia, a mulher e os filhos dele tinham chegado à residência de veraneio de Mussolini no Adriático, onde Dollfuss deveria se juntar a eles. Coube ao Duce dar a notícia. Pio XI ficou desolado. No ano anterior, Dollfuss fora a Roma assinar uma concordata entre a Áustria e a Santa Sé. O papa o conhecia e o considerava um bom católico. “É horrível! É horrível!”, repetia. Sentado à sua mesa, olhava para o chão, a cabeça apoiada nas mãos. Quando enfim ergueu os olhos, perguntou: “O que vamos fazer? O que vamos fazer?”

O cardeal Pacelli tinha uma opinião menos entusiástica a respeito do líder austríaco. Em julho de 1933, quando soube que o Vaticano ia assinar uma concordata com Hitler, Dollfuss ficara furioso, convencido de que ela enfraqueceria a resistência austríaca a uma tentativa nazista de assumir o controle. Sabendo que Dollfuss escrevera um documento manifestando esse ponto de vista, Pacelli pediu um favor ao embaixador austríaco na Santa Sé. Seria bom, disse ele, que o relato de Dollfuss fosse retirado dos arquivos diplomáticos austríacos.



Durante aqueles meses, o papa Pio XI recebeu relatórios frequentes com detalhes sobre a campanha nazista contra os judeus. No início de março de 1933, pouco antes das eleições alemãs, Hitler tinha assegurado a um grupo de bispos que protegeria os direitos da Igreja, suas escolas e suas organizações. Num aparente esforço para conquistar o apoio católico, acrescentou que eram todos aliados na mesma luta, a batalha contra os judeus. “Tenho sido atacado pela maneira como trato a questão judaica”, disse Hitler. “Por 1 500 anos a Igreja considerou os judeus perniciosos, exilando-os em guetos […] Estou prestando o maior dos serviços ao cristianismo.”

Em abril, o papa recebeu de Munique uma carta de Edith Stein, uma filósofa alemã de 41 anos e de origem judaica, que se convertera ao catolicismo onze anos antes. Stein suplicou-lhe que se manifestasse sobre a campanha contra os judeus – travada por um governo que se dizia “cristão” e usava imagens cristãs para respaldar suas iniciativas. “Durante semanas”, escreveu ela, “não apenas judeus, mas também milhares de católicos fiéis na Alemanha e, acredito, no mundo inteiro, aguardaram e esperaram que a Igreja de Cristo erguesse a voz para pôr fim a esse abuso do nome de Cristo. O que é essa idolatria de raça e poder estatal que o rádio martela todos os dias nos ouvidos das massas, senão pura heresia?” E concluía com um apelo profético: “Todos nós, verdadeiros filhos da Igreja que observamos de perto a situação na Alemanha, tememos o pior para a reputação da Igreja se o silêncio continuar.”

O cardeal Pacelli, respondendo em nome do papa Pio XI, não escreveu para Stein, e sim para o arquiabade que encaminhara a carta ao Vaticano. Pacelli disse-lhe para transmitir a Stein que ele mostrara a carta ao pontífice. Acrescentava uma oração para que Deus protegesse Sua Igreja naqueles tempos difíceis. Isso foi tudo.

Talvez de modo surpreendente, a fé de Edith Stein se manteve forte. Antes do fim do ano, ela tomou os votos para se tornar freira carmelita. No fim da década de 30, buscaria refúgio na Holanda. Em 2 de agosto de 1942, os nazistas prenderam Stein e a irmã Rosa, ambas judias aos olhos deles, e as despacharam para Auschwitz. Em seus últimos suspiros, elas inalaram os vapores da câmara de gás. Mais ou menos na época em que Stein redigiu seu apelo ao papa Pio XI, Orsenigo mandou um telegrama para o cardeal Pacelli. Os nazistas tinham proclamado o antissemitismo uma política oficial de governo. Fora convocado um boicote contra lojas e negócios de propriedade de judeus, assim como contra médicos, advogados e outros profissionais de origem judaica. Uma lei de 7 de abril de 1933 demitiu os judeus do serviço público civil. Ao dar essa notícia, Orsenigo aconselhou o pontífice a não interferir. “Uma intervenção do representante da Santa Sé”, advertiu o núncio, “equivaleria a um protesto contra o governo.”

O papa seguiu o conselho e ficou calado. Surpreendentemente, foi Mussolini, e não Pio XI, que, nesses primeiros meses de governo nazista, recomendou ao Führer que parasse de perseguir os judeus. Em 30 de março, o Duce enviou uma mensagem confidencial ao seu embaixador em Berlim instruindo-o a encontrar-se com Hitler de imediato para adverti-lo de que sua campanha antissemita era um equívoco: ela “aumentaria a pressão moral e as retaliações econômicas da parte do judaísmo internacional”. Queria ter certeza de que Hitler entendesse que ele estava dando esse conselho num esforço para ser útil. “Todo regime tem não só o direito, mas o dever, de tirar de posições de influência elementos que não sejam de todo confiáveis”, argumentou ele, “mas fazê-lo na base de semitas versus raça ariana poderia ser prejudicial.” Não só os judeus se voltariam contra o regime nazista, advertiu Mussolini, se a campanha fosse adiante: “A questão do antissemitismo pode servir como uma bandeira anti-Hitler também para inimigos que sejam cristãos.” No dia seguinte, o embaixador italiano foi ver o Führer para lhe transmitir o conselho do Duce. O papa Pio XI estava informado. Uma nota nos arquivos da Secretaria de Estado do Vaticano informa que o apelo de Mussolini foi “levado e lido para Hitler e Goebbels meia hora antes do encontro de ministros que aprovou a lei que demitiria os funcionários públicos de raça semita”.

Rejeitando o conselho do Duce, Hitler prosseguiu em seu caminho assassino. Em 1935, as Leis de Nuremberg proibiram casamentos entre judeus e não judeus e cassaram a cidadania alemã daqueles que tivessem origem judaica. Ao relatar sobre o congresso nacional do Partido Nazista daquele ano, Orsenigo disse ao Vaticano que os nazistas justificavam a perseguição culpando os judeus pelo comunismo. “Não sei se todo o bolchevismo russo foi obra exclusiva dos judeus”, relatou o núncio, “mas aqui eles encontraram uma maneira de fazer o povo acreditar nisso e agir em conformidade contra o judaísmo.” E concluiu, em tom aziago: “Se, como parece provável, o governo nazista durar muito tempo, os judeus estão condenados a desaparecer deste país.”

O fato de a população católica da Alemanha achar a noção de uma conspiração judaica verossímil não deveria surpreender. Durante anos, a revista que passava pela avaliação do Vaticano, La Civiltà Cattolica – entre muitas outras publicações da Igreja –, vinha alertando que os judeus eram a força do mal por trás de uma perigosa conspiração. Dizia-se que controlavam em segredo tanto o comunismo quanto o capitalismo, ambos com o objetivo de escravizar os cristãos. A única diferença notável da versão nazista – além da camada adicional de pseudobiologia – era a omissão dos protestantes.

Uma das figuras mais influentes do Vaticano que instigavam essa teoria conspiratória era Włodzimierz Ledóchowski, superior-geral da ordem jesuíta. Numa carta escrita à mão em 1936, Ledóchowski recomendou ao papa que fizesse um alerta mundial sobre “o terrível perigo que cresce a cada dia”. A ameaça vinha da propaganda ateísta dos comunistas de Moscou – tudo produto de judeus, segundo ele –, enquanto “a grande imprensa mundial, também sob controle judaico, raramente diz uma palavra. […] Uma encíclica com esse argumento”, aconselhou, levaria “não apenas os católicos, mas outros também, a adotarem uma resistência mais enérgica e organizada”.

Compartilhando a crença de Ledóchowski de que o comunismo representava um grave perigo, Pio XI concordou em mandar preparar uma encíclica especial e, nos meses seguintes, enviou-lhe rascunhos para comentários e sugestões. Descontente com o fato de que os esboços nada diziam sobre os judeus, Ledóchowski continuou insistindo com o papa para acrescentar uma linguagem que os vinculasse ao perigo comunista. “Parece que nos seria necessário, numa encíclica como esta”, aconselhou ele, em resposta a um dos rascunhos, “pelo menos fazer uma alusão à influência judaica, afirmando não apenas que os autores intelectuais do comunismo (Marx, Lassalle[7] etc.) eram todos judeus, mas também que o movimento comunista na Rússia foi organizado por judeus. E agora, também, embora nem sempre abertamente em todas as regiões, se examinarmos mais detidamente, os judeus é que são os principais defensores e promotores da propaganda comunista.”

Ao lado da frase de Ledóchowski sobre os judeus serem responsáveis pelo comunismo na Rússia, o papa rabiscou uma única palavra: Verificare – Verificar. Ele divulgaria sua encíclica denunciando o comunismo um mês depois, com o nome de Divini Redemptoris, mas, para decepção do chefe jesuíta, não incluiria nem uma palavra sobre os judeus.

La Civiltà Cattolica não teve esses escrúpulos, fazendo tudo ao seu alcance para amedrontar católicos sobre a perigosa conspiração judaica. Poucos meses depois de o pontífice divulgar sua encíclica anticomunista, a revista publicou outra advertência intitulada “A questão judaica”. Ia direto ao ponto já na primeira frase: “Dois fatos, que parecem contraditórios, estão estabelecidos entre os judeus espalhados no mundo moderno: seu domínio sobre o dinheiro e sua preponderância no socialismo e no comunismo.” Não só os fundadores do comunismo eram judeus: de acordo com a revista jesuíta eles também eram “os mais recentes líderes revolucionários do socialismo moderno e do bolchevismo”.[8]



Enquanto Hitler desenvolvia o próprio plano para lidar com a ameaça judaica, a La Civiltà Cattolica pensava na resposta cristã apropriada. Enumerou três possibilidades. A melhor seria converter todos os judeus ao cristianismo, o que, é óbvio, não tinha chance de acontecer, pois eles insistiam teimosamente em permanecer na sua religião. A segunda possibilidade era transferi-los da Europa para a Palestina. Mas a terra não tinha condições de suportar todos os 16 milhões de indivíduos, e, ainda que tivesse, eles jamais fariam o serviço necessário, pois eram “singularmente dotados da faculdade de serem parasitas, e destruidores não têm aptidão alguma, nem gosto, para o trabalho manual”.

Só restava uma terceira opção, a abordagem que a Igreja tinha usado com êxito durante séculos: privar os judeus dos seus direitos de cidadãos.

Nessa mesma edição, La Civiltà Cattolica informava sobre o recente congresso nazista em Nuremberg, realizado em setembro de 1936. “Com tenacidade infatigável”, disse Hitler à multidão, “o quartel-general revolucionário judaico prepara a revolução mundial.” Depois de citar essa fala, a revista reproduzia, sem comentários, a afirmação de Hitler de que 98% dos principais cargos na Rússia estavam “nas mãos de judeus”. Nos anos que precederam o Holocausto, tanto os nazistas quanto a revista jesuíta continuariam martelando essa afirmação. Apesar disso, dos 417 membros dos mais altos órgãos de liderança da União Soviética em meados dos anos 20, apenas 6% vinham de famílias judias, e essa porcentagem caiu drasticamente na década de 30 – mesmo porque o grande expurgo de Stálin tinha fortes subtons antissemitas. Em 1938, enquanto La Civiltà Cattolica e o governo nazista continuavam a afirmar que quase todos os líderes da União Soviética eram judeus, o organismo mais poderoso do governo soviético, o Politburo formado por nove homens, tinha apenas um de origem judaica. Dos 37 membros do Presidium da União Soviética, um vinha de família judia.

No encontro de 1932 com Mussolini, o papa Pio XI manifestara sua preocupação com a ameaça comunista russa, vinculando-a ao “desprezo anticristão do judaísmo”. Mas muita coisa acontecera desde então. Hitler assumira o poder e não só enfraquecia a influência da Igreja na Alemanha, mas também difundia uma idolatria pagã contrária à mensagem cristã. Ficava cada vez mais claro para Pio XI que o maior perigo para o cristianismo vinha dos nazistas. Contudo, seus conselheiros discordavam, vendo em Hitler a maior esperança da Igreja de conter o avanço comunista. Recomendavam ao papa que não o ofendesse.


Trecho do livro O Papa e Mussolini, a ser lançado em abril pela editora Intrínseca. As notas de rodapé foram editadas pela piauí.


[1] Hermann Göring, líder do partido nazista e fundador da Gestapo, a polícia secreta alemã.

[2] O cardeal Eugenio Pacelli era um dos assessores mais próximos do papa Pio XI e viria a se tornar o papa Pio XII em 1939, após a morte de seu antecessor.

[3] O Partido do Centro Católico era um partido político laico, mas de ideologia católica. Havia sido fundado no fim do século XIX, em reação às investidas do chanceler Otto von Bismarck contra o poder da Igreja católica.

[4] Von Papen era um católico fervoroso e viria a se tornar amigo do cardeal Pacelli alguns anos depois.

[5] Pietro Gasparri era o cardeal secretário de Estado do papa Pio XI, responsável por assinar o Tratado de Latrão, que selou o destino do Vaticano como Estado independente em 1929.

[6] Mussolini também estava preocupado com a população de origem alemã da região de Alto Adige, na Itália, que o país adquirira logo após a Primeira Guerra Mundial e cuja lealdade era duvidosa.

[7] Ferdinand Lassalle foi um dos fundadores do movimento socialista em meados do século XIX na Alemanha.

[8] Para justificar e racionalizar a ligação dos judeus com os sistemas divergentes do capitalismo e comunismo, a revista jesuíta aludia às origens materialistas e econômicas dos dois sistemas.


David I. Kertzer, escritor, historiador e antropólogo norte-americano, é especialista em história política e religiosa da Itália
Revista Piaui - Folha

Napoleão - Mitos de além-túm


Entre acusações de manipulador e assassino do idealismo republicano, as controvérsias sobre o imperador francês perpassam sua morte

Raquel Stoiani


Caricatura alemã representando a carreira de Napoleão, da infância à derrota em Waterloo e ao exílio. Na "Lenda Napoleônica", ele foi transformado em um mártir que morreu solitário em Santa Helena.Uma preocupação constante de Napoleão Bonaparte foi a construção de sua imagem pública. Enquanto esteve no poder (1799-1815), ele estruturou uma complexa máquina de propaganda. Do homem da paz ao deus da guerra, do herói revolucionário à vítima dos contrarrevolucionários, comparando-se a Carlos Magno ou a Aníbal, modificava sua figura pública de acordo com as necessidades do momento. Seus opositores, por sua vez, buscaram desfigurá-lo com o mesmo empenho.

O famoso escritor romântico François René Auguste de Chateaubriand (1768-1848) foi um dos principais críticos da tirania imperial. A obra De Buonaparte et des Bourbons (1814), publicada logo após a primeira abdicação do imperador (1814), traz o retrato mais repulsivo de Napoleão: o destruidor, o estrangeiro de origem corsa indiferente à França, o devorador de gerações de jovens, o supressor de toda livre opinião, enfim, o tirano. Madame de Staël (1766-1817), escritora e dona de um famoso salão literário em Paris, também foi juíza severa do regime napoleônico. Nas Considérations sur la Révolution Française (1818), sua principal acusação a Bonaparte é a de assassino do idealismo republicano. Napoleão inicia um governo que se torna cada vez mais autocrático e abandona o ideal republicano em prol de uma monarquia, o império. É retratado como um egoísta manipulador dos homens, sem fé ou pátria, que não teria outro propósito além de sua própria grandeza.

Panfletos, charges e vários outros escritos, surgidos, em sua maioria, na Inglaterra – cabeça das coalizões contra a França –, fizeram circular pela Europa afora essas imagens negativas. Um exemplo é a caricatura “La Grande Procession de Couronnement de Napoléon Ier” (1805), do inglês Gillray, um de seus mais célebres trabalhos subvencionados pelo governo britânico. Trata-se de uma paródia do imenso quadro de David da teatral e suntuosa cerimônia de coroação de Napoleão em Notre-Dame. Nela, o cortejo imperial é representado de forma grotesca. O imperador aparece vestido como um rei de ópera bufa; Josefina, sua esposa, aparece obesa e deformada; o papa Pio VII, abatido e amedrontado, e os representantes das potências europeias, que ajudam a carregar o manto imperial, malvestidos e mal penteados, parecendo se curvar ao imperador mais por um problema de coluna do que por um respeito verdadeiro.

E além: com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, a má fama de Napoleão desembarcou nos trópicos. Afinal, D. João deixou Portugal escapando dos invasores franceses. Na Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822), primeiro periódico da América portuguesa, o príncipe regente fez circular o discurso e as imagens antinapoleônicas. Um levantamento estatístico das palavras mais utilizadas no jornal para se referir a Bonaparte indica os termos “tirano”, “usurpador” e “corso”. Recebia ainda outras caracterizações nada lisonjeiras, como louco, megalomaníaco ou o próprio anticristo. Enfim, era a soma de todos os males, uma ameaça que parecia estar à espreita e precisava ser combatida. O que se explica não apenas pelo trauma da invasão a Portugal: a intensa propaganda antinapoleônica atendia aos interesses do governo de D. João, justificando uma série de medidas de vigilância na nova sede do Império.

Após a morte de Napoleão, o livro Mémorial de Sainte-Helène (1823), de Emmanuel de Las Cases (1766-1842), teve imensa influência na França. O autor reúne uma série de anotações de conversas com o imperador, a quem acompanhara em seu último exílio. Começava a surgir a chamada “Lenda Napoleônica”, enriquecida ao longo do século XIX por poetas e novelistas comovidos com o trágico destino de Bonaparte. Ele passou a ser visto por muitos como um mártir mantido preso pelos vingativos reis europeus na distante ilha de Santa Helena, próxima à costa ocidental da África, onde morrera solitário. Las Cases descreve um Napoleão que passa a limpo sua carreira e se defende das acusações dos inimigos. Ali ele aparece como o filho da Revolução Francesa, o homem que consolidou a posse da igualdade de direitos, que tornou possível a saída da França do feudalismo, glorificando-a com suas vitórias; que arrancou à força a paz dos monarcas que odiavam a nação revolucionária e que se viu forçado a conquistar a Europa em legítima defesa.

Bom exemplo da influência da Lenda Napoleônica na historiografia é a Histoire du Consulat et de l’Empire (1845-1862), em que Adolphe Thiers (1797-1877) [ver box] demonstra admiração e afeição pelo imperador, aplaudido como o inimigo implacável do imperialismo inglês, o consolidador da Revolução em casa e seu promotor no exterior. Aquele que amou a França e primou pela honra, pelo poder e pelos interesses da nação.

Por volta de 1860, os ataques à Lenda Napoleônica ganharam força no campo da oposição ao governo de Napoleão III (1852-1870), que tinha como um dos seus pilares justamente a veneração ao falecido tio. Em Les Origines de la France Contemporaine (1890), o historiador Hippolyte Taine (1828-1893) exemplifica bem essa ofensiva contra a Lenda Napoleônica. Seu retrato do general-imperador causou sensação ao revelá-lo como uma criatura destituída de humanidade, brutal, cruel, sedenta de conquistas, um malfazejo demônio de origem estrangeira deixado solto na França e na Europa. Para Taine, as paixões violentas o levaram a cometer erros graves e a jamais considerar os interesses da França, que ele arrastou pouco a pouco para o abismo, como faria seu sobrinho. Mas nem esse perfil arrasador impediu o historiador de reconhecer méritos no período napoleônico. Segundo ele, a França devia a Napoleão a restauração da ordem institucional, uma modelar máquina burocrática e o estímulo do princípio da oportunidade para todos (a carreira aberta ao mérito e não condicionada ao nascimento), embora essas condições tenham sido impostas com mão de ferro e pelo silenciamento da opinião pública.

No início do século XX, Napoleão começa a ser apreciado de forma mais contida, ainda que as paixões continuem após a virada do século que viu o auge e a decadência do imperador. Georges Lefèbvre (1874-1959), em seu Napoléon (1935), enfatiza as realizações positivas do imperador e aprecia a grandeza de sua figura, mas não toma partido e evita julgamentos morais. Seu trabalho passou a ser referência nos estudos sobre Napoleão, ao destacar o imperador como um típico homem racionalista do século XVIII, que detestava o feudalismo, a desigualdade civil e a intolerância religiosa. A proteção dada por Napoleão ao nascente capitalismo francês levou ao progresso desse capitalismo e, consequentemente, ao desenvolvimento da burguesia. Por outro lado, seu estilo autoritário afastava-o dos mesmos ideais revolucionários. Era capaz de consultar os demais, mas nunca de debater ou discutir suas decisões. Em resumo: para Lefèbvre, Napoleão foi o último representante do despotismo esclarecido, ao combinar autoridade e reforma política e social.

No Brasil, os estudos sobre o tema tiveram como marco pioneiro o artigo “Napoleão I no Brasil”, de Ferreira da Costa, na Revista do Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano, em 1903. O autor revela uma trama em que se entrecruzam os acontecimentos revolucionários de 1817 em Pernambuco e planos de fuga de Bonaparte da ilha de Santa Helena. De lá para cá, interpretações brasileiras em torno do personagem foram incipientes, mas é interessante observar o retorno do fascínio por Napoleão em análises mais recentes. Exemplo é Napoleão Bonaparte, em que a historiadora Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves reconstrói a luta política e ideológica do período por meio de jornais e panfletos políticos.

Tudo indica que o confronto entre as várias interpretações continuará indefinidamente. Diversos Napoleões permanecem flutuando entre a “antiga ordem” e a “nova ordem” – ou entre os valores de antes e depois da Revolução Francesa. Assim como sabia se vender sob variadas facetas, ele se tornou um personagem fluido, cujo esboço não permite contornos definitivos.

A divergência de opiniões sobre Napoleão, que impede que sua figura seja traçada de modo conclusivo, parece ter sido pressagiada no quadro de Jacques-Louis David (1748-1825). Grande nome da pintura neoclássica francesa, David foi um dos principais artistas a auxiliar o imperador em sua política de autoglorificação. O primeiro retrato que o artista fez de Napoleão, enquanto este ainda era general, permaneceu inacabado.

Raquel Stoiani é autora da tese “Napoleão visto pela Luneta d’El Rei: construção e usos políticos do imaginário francês e napoleônico na América portuguesa (ca. 1808-1821)” (USP, 2009).


Saiba Mais - Bibliografia

BERTRAND, Jean-Paul; Forrest, Alan & Jourdan, Annie. Napoléon, le Monde et les Anglais. Guerre de Mots et des Images. Paris: Éditions Autrement, 2004.

GEYL, Pieter. Napoleon For and Against. New Haven/London: Yale University, 1963.
HOLTMAN, Robert. Napoleonic Propaganda. Bâton Rouge: Louisiana State University Press, 1950.
KAFKER, Frank A. & Laux, James M. (ed.). Napoleon and His Times: selected interpretations. Malabar, Flórida: Krieger Publishing Company, 1991.

Saiba Mais - Filmes

“Guerra e Paz”, de King Vidor (1956).
“Monsieur N”, de Antoine de Caunes (2003).
“As Novas Roupas do Imperador”, de Alan Taylor (2001).
“Napoleão”, de Abel Gance (1927).
Revista de História da Biblioteca Nacional

Desculpem a moléstia - Eduardo Galeano


Desculpem a moléstia
Segundo a revista [i]Foreign Policy[/i], a Somalia é o lugar mais perigoso do mundo. Mas quem são os piratas? Os mortos de fome que assaltam navios ou os especuladores de Wall Street, que há anos assaltam o mundo e agora recebem multimilionárias recompensas por suas atividades? Por que o mundo premia os que o saqueiam? Por que a justiça é cega de um único olho? Wal Mart, a empresa mais poderosa de todas, proíbe os sindicatos. McDonald’s, também. Por que estas empresa violam, com delinqüente impunidade, a lei internacional? O artigo é de Eduardo Galeano

Eduardo Galeano

Quero compartilhar com vocês algumas perguntas, moscas que zumbem na minha cabeça:

O sapatista do Iraque, o que jogou os sapatos contra Bush, foi condenado a três anos de prisão. Não merecia, na verdade, uma condecoração?

Quem é o terrorista? O sapatista ou o sapateado? Não é culpado de terrorismo o serial killer que, mentindo, inventou a guerra do Iraque, assassinou a um montão de gente, legalizou a tortura e mandou aplicá-la?

São culpados os habitantes de Atenco, no México, ou os indígenas mapuches do Chile, ou os kekchies da Guatemala, ou os camponeses sem terra do Brasil, todos acusados de terrorismo por defenderem seu direito à terra? Se sagrada é a terra, mesmo se a lei não o diga, não são sagrados também os que a defendem?

Segundo a revista Foreign Policy, a Somália é o lugar mais perigoso do mundo. Mas quem são os piratas? Os mortos de fome que assaltam navios ou os especuladores de Wall Street, que há anos assaltam o mundo e agora recebem multimilionárias recompensas por suas atividades?

Porque o mundo premia os que o saqueiam?

Por que a justiça é cega de um único olho? Wal Mart, a empresa mais poderosa de todas, proíbe os sindicatos. McDonald’s, também. Por que estas empresa violam, com delinqüente impunidade, a lei internacional? Será que é por que no mundo do nosso tempo o trabalho vale menos do que o lixo e valem menos ainda os direitos dos trabalhadores?

Quem são os justos e quem são os injustos? Se a justiça internacional realmente existe, por que não julga nunca aos poderosos? Não são presos os autores dos mais ferozes massacres? Será que é porque são eles que têm as chaves das prisões?

Por que são intocáveis as cinco potências que tem direito de veto nas Nações Unidas? Esse direito tem origem divina? Velam pela paz os que fazem o negócio da guerra? É justo que a paz mundial esteja a cargo das cinco potências que são as cinco principais produtoras de armas? Sem desprezar os narcotraficantes, este também não é um caso de “crime organizado”?

Mas não demandam castigo contra os senhores do mundo os clamores dos que exigem, em todos os lugares, a pena de morte. Só faltava isso. Os clamores clamam contra os assassinos que usam navalhas, não contra os que usam mísseis.

E a gente se pergunta: já que esses justiceiros estão tão loucos de vontade de matar, por que não exigem a pena de morte contra a injustiça social? É justo um mundo em que a cada minuto destina três milhões de dólares aos gastos militares, enquanto a cada minuto morrem quinze crianças por fome ou doença curável? Contra quem se arma, até os dentes, a chamada comunidade internacional? Contra a pobreza ou contra os pobres?

Por que os adeptos fervorosos da pena de morte não exigem a pena de morte contra os valores da sociedade de consumo, que cotidianamente atentam contra a segurança pública? Ou por acaso não convida ao crime o bombardeio de publicidade que aturde a milhões e milhões de jovens desempregados ou mal pagos, repetindo para eles dia e noite que ser é ter, ter um automóvel, ter sapatos de marca, ter, ter, e que, quem não tem, não é?

E por que não se implanta a pena de morte contra a pena de morte? O mundo está organizado a serviço da morte. Ou não fabrica a morte a industria militar, que devora a maior parte dos nossos recursos e boa parte das nossas energias? Os senhores do mundo só condenam a violência quando são outros os que a exercem. E este monopólio da violência se traduz em um fato inexplicável para os extraterrestres e também insuportável para os terrestres que ainda queremos, contra toda evidência, sobreviver: os humanos somos os únicos especializados no extermínio mútuo e desenvolvemos uma tecnologia da destruição que está aniquilando, de passagem, ao planeta e a todos os seus habitantes.

Esta tecnologia se alimenta do medo. É o medo que fabrica os inimigos que justificam o desperdício militar e policial. E em vias de implantar a pena de morte, que tal se condenamos à morte o medo? Não seria saudável acabar com essa ditadura universal dos assustadores profissionais? Os semeadores de pânico nos condenam à solidão, nos proíbem a solidariedade: salve-se quem puder, destruam-se uns aos outros, o próximo é sempre um perigo que se aproxima, olho, cuidado, esse cara vai te roubar, aquele vai te violar, este carrinho de nenê esconde bomba muçulmana e se essa mulher te olha, essa vizinha de aspecto inocente, certamente vai te contagiar com a gripe suína.

No mundo de cabeça para baixo, dão medo até os mais elementares atos de justiça e de bom senso. Quando o presidente Evo Morales começou a refundação da Bolívia, para que esse país de maioria indígena, deixasse de ter vergonha de olhar no espelho, provocou pânico. Este desafio era catastrófico do ponto de vista da ordem racista tradicional, que dizia que era a unida ordem possível. Evo era, trazia o caos e a violência e por sua culpa a unidade nacional ia explodir em pedaços. E quando o presidente equatoriano Rafael Correa anunciou que se negava a pagar as dívidas não legítimas, a noticia produziu terror no mundo financeiro e o Equador foi ameaçado com terríveis castigos, por estar dando um tão mau exemplo. Se as ditaduras militares e os políticos ladrões foram sempre mimados pelos bancos internacionais, não nos acostumamos já a aceitar como fatalidade do destino que o povo pague o garrote que o golpeia e a cobiça que o saqueia?

Mas será que se divorciaram para sempre o bom senso e a justiça? Não nasceram para andar juntos, bem pegadinhos, o bom senso e a justiça?
Não é de bom senso, e também de justiça, esse lema das feministas que dizem que se nós, os machos, ficássemos grávidos, o aborto seria livre? Por que não se legaliza o direito ao aborto? Será por que então deixaria de ser o privilegio das mulheres que podem pagá-lo e dos médicos que podem cobrá-lo?

O mesmo acontece com outro escandaloso caso de negação da justiça e do bom senso: por que não se legalizam as drogas? Por acaso não se trata, como no caso do aborto, uma questão de saúde publica? E o país que tem mais drogados, que autoridade moral tem, que autoridade moral tem para condenar os que abastecem sua demanda? E por que os grandes meios de comunicação, tão consagrados à guerra contra o flagelo da droga, não dizem nunca que provém do Afeganistão quase toda a heroína que se consome no mundo? Quem manda no Afeganistão? Não é esse um país ocupado militarmente pelo pais messiânico que se atribui a missão de salvar a todos nós?

Por que não se legalizam as drogas pura e simplesmente? Não será por que elas dão o melhor pretexto para as invasões militares, além de brindar os mais suculentos lucros aos bancos que de noite trabalham como lavanderias?

Agora o mundo está triste porque se vendem menos carros. Uma das conseqüências da crise mundial é a queda da próspera indústria automobilística. Se tivéssemos algum resto de bom senso e um pouquinho de sentido de justiça, não teríamos que celebrar essa boa noticia? Ou por acaso a diminuição de automóveis não é uma boa noticia, do ponto de vista da natureza, que estará um pouquinho menos envenenada e dos pedestres, que morrerão um pouco menos?

Segundo Lewis Carroll, a Rainha explicou a Alice como funciona a justiça no país das maravilhas:

- Ai você tem – disse a Rainha. Está presa cumprindo sua condenação, mas o processo só vai começar na segunda-feira. E, claro, o crime será cometido no final.

Em El Salvador, o arcebispo Oscar Arnulfo Romero comprovou que a justiça, como a serpente, só morde os descalços. Ele morreu baleado, por denunciar que no seu país os descalços nasciam condenados de antemão, pelo delito de nascimento.

O resultado das recentes eleições em El Salvador não é de alguma forma uma homenagem? Uma homenagem ao arcebispo Romero e aos milhares que como ele morreram lutando por uma justiça justa no reino da injustiça?
Às vezes acabam mal as historias da História, mas ela, a História, não acaba. Quando diz adeus, está dizendo até logo.

Tradução: Emir Sader

Revista Carta Maior

O Império do Consumo - Eduardo Galeano

A explosão do consumo no mundo atual faz mais barulho do que todas as guerras e mais algazarra do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco, aquele que bebe a conta, fica bêbado em dobro. A gandaia aturde e anuvia o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo faz muito barulho, assim como o tambor, porque está vazia; e na hora da verdade, quando o estrondo cessa e acaba a festa, o bêbado acorda, sozinho, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos quebrados que deve pagar. A expansão da demanda se choca com as fronteiras impostas pelo mesmo sistema que a gera. O sistema precisa de mercados cada vez mais abertos e mais amplos tanto quanto os pulmões precisam de ar e, ao mesmo tempo, requer que estejam no chão, como estão, os preços das matérias primas e da força de trabalho humana. O sistema fala em nome de todos, dirige a todos suas imperiosas ordens de consumo, entre todos espalha a febre compradora; mas não tem jeito: para quase todo o mundo esta aventura começa e termina na telinha da TV. A maioria, que contrai dívidas para ter coisas, termina tendo apenas dívidas para pagar suas dívidas que geram novas dívidas, e acaba consumindo fantasias que, às vezes, materializa cometendo delitos. O direito ao desperdício, privilégio de poucos, afirma ser a liberdade de todos.

Dize-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa as flores dormirem, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores estão expostas à luz contínua, para fazer com que cresçam mais rapidamente. Nas fábricas de ovos, a noite também está proibida para as galinhas. E as pessoas estão condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EUA consomem metade dos calmantes, ansiolíticos e demais drogas químicas que são vendidas legalmente no mundo; e mais da metade das drogas proibidas que são vendidas ilegalmente, o que não é uma coisinha à-toa quando se leva em conta que os EUA contam com apenas cinco por cento da população mundial.

“Gente infeliz, essa que vive se comparando“, lamenta uma mulher no bairro de Buceo, em Montevidéu. A dor de já não ser, que outrora cantava o tango, deu lugar à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. “Quando não tens nada, pensas que não vales nada“, diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, em Buenos Aires. E outro confirma, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: “Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas, e vivem suando feito loucos para pagar as prestações“.

Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade, e a uniformidade é que manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todas partes suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora do que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.

O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde quantidade com qualidade, confunde gordura com boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a “obesidade mórbida” aumentou quase 30% entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou 40% nos últimos dezesseis anos, segundo pesquisa recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado. O país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat free, tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar desce do carro só para trabalhar e para assistir televisão. Sentado na frente da telinha, passa quatro horas por dia devorando comida plástica.

Vence o lixo fantasiado de comida: essa indústria está conquistando os paladares do mundo e está demolindo as tradições da cozinha local. Os costumes do bom comer, que vêm de longe, contam, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade e constituem um patrimônio coletivo que, de algum modo, está nos fogões de todos e não apenas na mesa dos ricos. Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão sendo esmagadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do hambúrguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida em escala mundial, obra do McDonald´s, do Burger King e de outras fábricas, viola com sucesso o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas portas.

A Copa do Mundo de futebol de 1998 confirmou para nós, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola proporciona eterna juventude e que o cardápio do McDonald´s não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército do McDonald´s dispara hambúrgueres nas bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O duplo arco dessa M serviu como estandarte, durante a recente conquista dos países do Leste Europeu.

As filas na frente do McDonald´s de Moscou, inaugurado em 1990 com bandas e fanfarras, simbolizaram a vitória do Ocidente com tanta eloqüência quanto a queda do Muro de Berlim. Um sinal dos tempos: essa empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. O McDonald´s viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama de Macfamília, tentaram sindicalizar-se em um restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas, em 98, outros empregados do McDonald´s, em uma pequena cidade próxima a Vancouver, conseguiram essa conquista, digna do Guinness.

As massas consumidoras recebem ordens em um idioma universal: a publicidade conseguiu aquilo que o esperanto quis e não pôde.

Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que a televisão transmite. No último quarto de século, os gastos em propaganda dobraram no mundo todo. Graças a isso, as crianças pobres bebem cada vez mais Coca-Cola e cada vez menos leite e o tempo de lazer vai se tornando tempo de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisão, e a televisão está com a palavra. Comprado em prestações, esse animalzinho é uma prova da vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos.

Pobres e ricos conhecem, assim, as qualidades dos automóveis do último modelo, e pobres e ricos ficam sabendo das vantajosas taxas de juros que tal ou qual banco oferece. Os especialistas sabem transformar as mercadorias em mágicos conjuntos contra a solidão. As coisas possuem atributos humanos: acariciam, fazem companhia, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o carro é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados.

Os buracos no peito são preenchidos enchendo-os de coisas, ou sonhando com fazer isso. E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas escolhem você e salvam você do anonimato das multidões. A publicidade não informa sobre o produto que vende, ou faz isso muito raramente. Isso é o que menos importa. Sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias. Comprando este creme de barbear, você quer se transformar em quem?

O criminologista Anthony Platt observou que os delitos das ruas não são fruto somente da extrema pobreza. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social pelo sucesso, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Eu sempre ouvi dizer que o dinheiro não trás felicidade; mas qualquer pobre que assista televisão tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro trás algo tão parecido que a diferença é assunto para especialistas.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX marcou o fim de sete mil anos de vida humana centrada na agricultura, desde que apareceram os primeiros cultivos, no final do paleolítico. A população mundial torna-se urbana, os camponeses tornam-se cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo, e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação e pela erosão das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em todas partes, mas por experiência própria sabem que atende nos grandes centros urbanos.

As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os esperadores olham a vida passar, e morrem bocejando; nas cidades, a vida acontece e chama. Amontoados em cortiços, a primeira coisa que os recém chegados descobrem é que o trabalho falta e os braços sobram, que nada é de graça e que os artigos de luxo mais caros são o ar e o silêncio.

Enquanto o século XIV nascia, o padre Giordano da Rivalto pronunciou, em Florença, um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam “porque as pessoas sentem gosto em juntar-se“. Juntar-se, encontrar-se. Mas, quem encontra com quem? A esperança encontra-se com a realidade? O desejo, encontra-se com o mundo? E as pessoas, encontram-se com as pessoas?Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente encontra-se com as coisas?

O mundo inteiro tende a transformar-se em uma grande tela de televisão, na qual as coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos.

Os terminais de ônibus e as estações de trens, que até pouco tempo atrás eram espaços de encontro entre pessoas, estão se transformando, agora, em espaços de exibição comercial. O shopping center, o centro comercial, vitrine de todas as vitrines, impõe sua presença esmagadora. As multidões concorrem, em peregrinação, a esse templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora é submetida ao bombardeio da oferta incessante e extenuante. A multidão, que sobe e desce pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago; e para ver e ouvir não é preciso pagar passagem. Os turistas vindos das cidades do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas benesses da felicidade moderna, posam para a foto, aos pés das marcas internacionais mais famosas, tal e como antes posavam aos pés da estátua do prócer na praça.

Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center, ao shopping center, como antes iam até o centro. O tradicional passeio do fim-de-semana até o centro da cidade tende a ser substituído pela excursão até esses centros urbanos. De banho tomado, arrumados e penteados, vestidos com suas melhores galas, os visitantes vêm para uma festa à qual não foram convidados, mas podem olhar tudo. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas.

A cultura do consumo, cultura do efêmero, condena tudo à descartabilidade midiática. Tudo muda no ritmo vertiginoso da moda, colocada à serviço da necessidade de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje, quando o único que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, são tão voláteis quanto o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa na velocidade da luz: ontem estava lá, hoje está aqui, amanhã quem sabe onde, e todo trabalhador é um desempregado em potencial.

Paradoxalmente, os shoppings centers, reinos da fugacidade, oferecem a mais bem-sucedida ilusão de segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, além das turbulências da perigosa realidade do mundo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efêmera, que se esgota assim como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem pausa, no mercado. Mas, para qual outro mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar na historinha de que Deus vendeu o planeta para umas poucas empresas porque, estando de mau humor, decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha para pegar bobos.

Aqueles que comandam o jogo fazem de conta que não sabem disso, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro por corrigir, nem um defeito por superar: é uma necessidade essencial. Não existe natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.

* Eduardo Hughes Galeano (Montevidéu, 3 de setembro de 1940) é um jornalista e escritor uruguaio, autor de “As Veias Abertas da América Latina“, livro em que relata o que considera a exploração sofrida pelas nações latino-americanas.
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terça-feira, 30 de outubro de 2018

A hipermassificação e a destruição do indivíduo


A hipermassificação e a destruição do indivíduo
O “tempo livre” é de fato assim tão livre? Esse tempo, saturado de produtos culturais, impede que cada qual se diferencie por escolhas próprias, espoliando sua energia vital. E, levando a uma perda generalizada de individuação, engendra rebanhos de seres em permanente e angustiante mal-estar – rebanhos que se aproximam cada vez mais da horda furiosa
Bernard Stiegler

Uma fábula dominou as últimas décadas e iludiu em boa parte os pensamentos políticos e as filosofias, afirmando, desde 1968, que tínhamos enfim alcançado a era do “tempo livre”, da “permissividade” e da “flexibilidade” das estruturas sociais, a sociedade do lazer e do individualismo. Esse conto de fadas, teorizado sob a denominação de “sociedade pós-industrial”, influenciou e fragilizou notadamente a filosofia “pós-moderna”. Inspirou os social-democratas, querendo fazer crer que tínhamos passado da época das massas laboriosas e consumidoras típicas da era industrial para o tempo das classes médias. O proletariado, segundo tal fabulação, estaria em vias de desaparecimento.

Esse último, porém, não apenas continua a ser numericamente significativo como ainda cresceu, com a larga proletarização dos empregados, assujeitados a um dispositivo maquínico que os priva de iniciativa e de saberes profissionais. Quanto às classes médias, estas se pauperizaram. Falar de crescimento e impulso do lazer – no sentido de um tempo liberado de qualquer coerção, o tempo da “disponibilidade absoluta”, como diz o dicionário – não é nada evidente, pois o lazer não tem mais por função liberar o tempo individual, mas melhor controlá-lo no intuito de supermassificá-lo: tornou-se o instrumento de uma nova servidão voluntária. Produzido e organizado pelas indústrias culturais e do entretenimento, o lazer forma o que Gilles Deleuze [1] chamou de as sociedades de controle. Estas desenvolvem um capitalismo cultural e de serviços que fabrica modos e estilos de vida, transforma a vida cotidiana segundo seus interesses imediatos, padroniza as existências pelo viés dos “conceitos de marketing”. Como este, por exemplo, do life-time value, que designa o valor economicamente calculável do tempo de vida de um indivíduo, cujo valor intrínseco é dessingularizado e desindividualizado.

O marketing, como o entendeu Deleuze, transformou-se no “instrumento do controle social” [2]. A sociedade pretensamente “pós-industrial” tornou-se, ao contrário, hiperindustrial [3]. Longe de se caracterizar pelo domínio do individualismo, a época mais se aproxima de um devir gregário dos comportamentos e de uma perda generalizada de individuação.

O conceito de perda de individuação introduzido por Gilbert Simondon [4] expressava aquilo que adveio ao operário submetido à máquina-ferramenta no século 19: este perdeu seus saberes técnicos e, com isso, sua individualidade, reduzido à condição de proletário. Agora, é o consumidor que é padronizado em seu comportamento pela formatação e fabricação artificial de seus desejos. Perdeu, também ele, seu “saber viver”, substituído pelas normas editadas pelas marcas.

“Racionalmente” promovidas pelo marketing, as marcas assemelham-se às “bíblias” que regem o funcionamento das franquias de fast-food, às quais os concessionários devem conformar-se ao pé da letra, sob pena de ruptura de contrato, ou mesmo de processo. Essa privação de individuação, e portanto de existência, é extremamente perigosa: Richard Durn, o assassino de oito integrantes do conselho municipal de Nanterre, escreveu em seu diário que precisou “fazer o mal para, ao menos uma vez em [sua] vida, experimentar o sentimento de existir” [5].

Freud escreveu, em 1930, que, mesmo dotado pelas tecnologias industriais dos atributos do divino, e “por mais que se assemelhe a um deus, o homem hoje não se sente feliz” [6]. É exatamente o que a sociedade hiperindustrial faz dos seres humanos: privando-os de individualidade, ela engendra rebanhos de seres em permanente e angustiante mal-estar; seres aos quais falta um vir-a-ser, seres sem porvir. Esses rebanhos desumanos terão cada vez mais tendência a se tornarem hordas em fúria. Freud, em A psicologia das massas e análise do eu, esboçava, já em 1920, a análise dessas multidões tentadas a regredir ao estágio da horda, habitadas pela pulsão de morte descoberta em Além do princípio do prazer e que O mal-estar na civilização retomou dez anos depois, quando o anti-semitismo, o totalitarismo e o nazismo se alastravam pela Europa.

Ainda que tenha se referido à fotografia, ao gramofone e ao telefone, Freud não evocou o rádio nem – ainda mais estranho – o cinema, utilizado por Mussolini, Hitler e Stálin, esse cinema acerca do qual um senador americano dizia, já em 1912, que “trade follows films” (o mercado acompanha os filmes) [7]. Tampouco imaginou a televisão, cuja emissão pública os nazistas ensaiaram em abril de 1935. No mesmo momento, Walter Benjamin [8] analisava aquilo que denominou o “narcisismo da massa”: o controle dessas mídias pelos poderes totalitários. Mas ele não pareceu aquilatar melhor que Freud a dimensão funcional – em todos os países, incluídos os democráticos – das indústrias culturais nascentes.

Edward Bernays, ao contrário, duplo sobrinho de Freud, teorizou-as. Explorou as imensas possibilidades de controle daquilo que seu tio chamara de “economia libidinal”. E desenvolveu as “relações públicas”, técnicas de persuasão inspiradas pelas teorias do inconsciente, que pôs a serviço do fabricante de cigarros Philip Morris por volta de 1930 – no momento em que Freud percebia, na Europa, a ascensão da pulsão de morte contra a civilização.

Freud não se interessava pelo que se passava então nos Estados Unidos. Salvo por uma estranha observação. Ele se diz, primeiro, obrigado a “vislumbrar também o perigo suscitado por um estado particular que se pode chamar de ‘a miséria psicológica de massa’, e que é criada principalmente pela identificação dos membros de uma sociedade uns com os outros, enquanto certas personalidades com temperamento de chefe não conseguem [...] desempenhar esse importante papel que deve lhes caber na formação de uma massa”. E afirma, em seguida: “O estado atual da América forneceria uma boa ocasião para estudar esse temível prejuízo levado à civilização. Resisto à tentação de lançar-me na crítica à civilização americana, não desejando dar a impressão de querer, eu mesmo, usar métodos americanos” [9].

Foi preciso esperar que Theodor Adorno e Max Horkheimer [10] denunciassem o “modo de vida americano” para que a função das indústrias culturais fosse verdadeiramente analisada, além da crítica dos meios de comunicação surgida desde os anos 1910 com Karl Kraus [11].

Embora suas análises permaneçam insuficientes [12], esses autores compreenderam que as indústrias culturais formam um sistema conjunto com as indústrias em geral – sistema cuja função consiste em fabricar os comportamentos de consumo, massificando os modos de vida. Trata-se de garantir o escoamento dos produtos sempre novos engendrados pela atividade econômica, cuja necessidade não é espontaneamente sentida pelos consumidores. Essa reticência dos consumidores provoca um risco endêmico de superprodução, e portanto de crise econômica, que só é possível combater – a não ser que haja um questionamento geral do sistema – com o avanço daquilo que constituía, aos olhos de Adorno e de Horkheimer, a própria barbárie.

Depois da Segunda Guerra mundial, a frente da teoria das relações públicas foi ocupada pela “pesquisa motivacional”, destinada a promover a absorção do excedente de produção quando do retorno à paz – avaliado em 40%. Uma agência de publicidade assim escrevia em 1955: o que faz a grandeza da América do Norte “é a criação de necessidades e de desejos, a criação do desgosto por tudo que é antigo e ultrapassado”. Promover o gosto supõe de fato provocar o desgosto, o que termina por afetar o próprio gosto. Apelava-se ao “subconsciente” para ultrapassar as dificuldades encontradas pelos industriais quando se tratava de levar os americanos a comprarem o que suas fábricas podiam produzir [13].

Na França, desde o século 19, vários órgãos se empenhavam em facilitar a adoção dos produtos industriais, que transformavam por completo os modos de vida, lutando contra as resistências suscitadas por tais transformações: assim se deu a criação do “reclame” por Emile de Girardin. Mas foi preciso esperar o surgimento das indústrias culturais (do cinema e do disco) e principalmente dos programas e emissões (do rádio e da televisão) para que se desenvolvessem os objetos temporais industriais. Estes permitem um controle íntimo dos comportamentos individuais, transformando-os em comportamentos de massa – embora o espectador, isolado diante de seu aparelho de TV, conserve a ilusão de um lazer solitário.

É também o caso da atividade dita “de tempo livre”, que, na era hiperindustrial, estende a todas as ações humanas o comportamento mimético e compulsivo do consumidor: tudo deve tornar-se consumível, desde o sabão em pó e o chiclete até a saúde, a educação e a cultura. Mas a ilusão que é preciso oferecer para chegar a isso só pode provocar frustrações, descréditos e instintos de destruição. Sozinho diante de meu televisor, posso sempre pensar que me comporto individualmente; mas a realidade é que eu faço como fazem milhões de telespectadores que assistem ao mesmo programa no mesmo instante.

As atividades industriais, tornadas planetárias, pretendem realizar gigantescas economias de escala e, por meio de tecnologias apropriadas, controlar e homogeneizar os comportamentos: as indústrias de programas ocupam-se disso, por meio dos objetos temporais que compram e difundem a fim de captar o tempo das consciências que formam suas audiências, e que elas vendem aos anunciantes.

Um objeto temporal – melodia, filme ou emissão de rádio ou televisão – é constituído pelo tempo de seu desenrolar, aquilo que Edmund Husserl [14] nomeou como “fluxo”. É um objeto que passa. Como as consciências que ele unifica, esse objeto é constituído pelo fato de desaparecer à medida que aparece. Com o nascimento da rádio civil (1920) e mais tarde dos primeiros programas de televisão (1947), as indústrias de programas passaram a produzir objetos temporais que coincidem no tempo de seu desenrolar com o desenrolar do tempo das consciências das quais são objetos. Tal coincidência permite à consciência adotar o tempo desses objetos temporais. As indústrias culturais contemporâneas podem, assim, fazer as massas de espectadores adotar o tempo do consumo do dentifrício, do refrigerante, do automóvel. É quase exclusivamente desse modo que a indústria cultural se financia.

Ora, uma consciência é essencialmente uma consciência de si: uma singularidade. Só posso dizer “eu” porque dou a mim mesmo meu próprio tempo. Enormes dispositivos de sincronização, as indústrias culturais, em particular a televisão, são máquinas de liquidar esse “si mesmo”. Quando dezenas ou centenas de milhões de telespectadores assistem simultaneamente ao mesmo programa ao vivo, essas consciências do mundo inteiro interiorizam os mesmos objetos temporais. E se, todos os dias, elas repetem, na mesma hora e regularmente, o mesmo comportamento de consumo audiovisual, porque tudo as leva a isso, tais “consciências” terminam por tornar-se a consciência da mesma pessoa – isto é, de ninguém. A inconsciência do rebanho libera um fundo pulsional que não se liga mais ao desejo – pois este supõe a singularidade. Durante a década de 1940, a indústria americana pôs em ação técnicas de marketing que não cessaram depois de se intensificar, produzindo uma miséria simbólica, libidinal e afetiva. Essa última conduz à perda daquilo que eu próprio chamei o narcisismo primordial [15].

A fábula pós-industrial não compreende que a força do capitalismo contemporâneo repousa sobre o controle simultâneo da produção e do consumo, regulando as atividades das massas. Ela propaga a falsa idéia de que o indivíduo é aquilo que se opõe ao grupo. Simondon demonstrou, ao contrário, que o indivíduo é um processo. E que se transforma ininterruptamente naquilo que ele é. Ora, só nos individualizamos coletivamente. O que torna possível essa individuação intrinsecamente coletiva é o fato de que a individuação de uns e de outros resulta da apropriação, por cada singularidade, daquilo que Simondon chamou de fundo pré-individual comum a todas as singularidades.

Herança oriunda da experiência acumulada das gerações, o fundo pré-individual sobrevive apenas na medida em que é apropriado singularmente e assim transformado pela participação dos indivíduos psíquicos que o compartilham. Mas só é compartilhado aquilo que é, a cada vez, individuado. E só é individuado na medida em que for singularizado. O grupo social se constitui como composição de uma sincronia, na medida em que se reconhece em uma herança comum, e de uma diacronia, na medida em que torna possível e legítima a apropriação singular por cada membro do grupo desse fundo pré-individual [16].

As indústrias de programas tendem, ao contrário, a opor sincronia e diacronia, visando produzir uma hipersincronização que torna tendencialmente impossível a apropriação singular do fundo pré-individual constituído pelos programas. A grade desses programas substitui o que André Leroi-Gourhan denominou de programas socio-étnicos: ela é concebida para que o meu passado se torne igual ao passado dos meus vizinhos, e para que nossos comportamentos se gregarizem.

Um eu é uma consciência consistindo em um fluxo temporal do que Husserl chamou de “retenções primárias”, isto é, aquilo que a consciência retém, no agora, do fluxo em que ela consiste. Assim a nota que ressoa em uma nota se apresenta à minha consciência como o ponto de passagem de uma melodia: a nota precedente continua presente, mantida no e pelo agora; e constitui a nota que a sucede, formando com ela uma relação, o intervalo. Como fenômenos que eu recebo e que eu produzo (uma melodia que executo ou ouço, uma frase que pronuncio ou escuto, um gesto que executo ou sofro etc.), minha vida consciente consiste essencialmente de tais retenções.

Ora, essas últimas são seleções: não retenho tudo o que pode ser retido [17]. No fluxo daquilo que aparece, a consciência opera seleções que são propriamente as retenções: se eu ouço duas vezes em seguida a mesma melodia, minha consciência do objeto muda. E tais seleções se fazem através dos filtros em que consistem as retenções secundárias, isto é, as reminiscências de retenções primárias anteriores, que a memória conserva e que constituem a experiência.

A vida da consciência consiste nesses agenciamentos de retenções primárias, filtradas por retenções secundárias, enquanto as relações das retenções primárias e secundárias são sobredeterminadas pelas retenções terciárias: os objetos-suportes da memória e as mnemotécnicas, que permitem registrar sinais – notadamente os fotogramas, fonogramas, cinematogramas, videogramas e tecnologias digitais, que formam a infra-estrutura tecnológica das sociedades de controle na época hiperindustrial.

As retenções terciárias são o que, tal qual o alfabeto, sustentam o acesso aos fundos pré-individuais de toda individuação psíquica e coletiva. Existem em todas as sociedades humanas. Condicionam a individuação como partilha simbólica, que torna possível a exteriorização da experiência individual por meio de sinais. Quando se tornam industriais, as retenções terciárias constituem tecnologias de controle que alteram fundamentalmente a troca simbólica: repousando sobre a oposição entre produtores e consumidores, elas permitem a hipersincronização dos tempos das consciências.

Estas tornam-se cada vez mais tramadas pelas mesmas retenções secundárias e tendem a selecionar cada vez mais as mesmas retenções primárias: percebem então que não têm muita coisa a dizer umas às outras e se encontram cada vez menos. Ei-las remetidas à sua solidão, diante das telas nas quais consagram cada vez menos seu tempo ao lazer – isto é, a um tempo liberado de qualquer coerção.

Tamanha miséria simbólica conduz à ruína do narcisismo e à debandada econômica e política. Antes de ser uma patologia, o narcisismo condiciona a psique, o desejo e a singularidade [18]. Ora, se, com o marketing, não se trata mais apenas de garantir a reprodução do produtor, mas de controlar a fabricação, a reprodução, a diversificação e a segmentação das necessidades do consumidor, são então as energias existenciais que garantem o funcionamento do sistema, como frutos do desejo dos produtores, de um lado, e dos consumidores, do outro – o trabalho, como o consumo, representando a libido captada e canalizada. O trabalho em geral é sublimação e princípio de realidade. Mas o trabalho industrialmente dividido traz cada vez menos satisfação sublimatória e narcísica, e o consumidor cuja libido é captada encontra cada vez menos prazer em consumir: ele debanda, então, trespassado pela compulsão da repetição.

Nas sociedades de modulação que são as sociedades de controle, trata-se de condicionar, por meio das tecnologias audiovisuais e digitais da aisthesis [19], os tempos de consciência e o inconsciente dos corpos e das mentes. Na era hiperindustrial, a estética – como dimensão do simbólico transformada a um só tempo em arma e teatro da guerra econômica – substitui a experiência sensível dos indivíduos psíquicos e sociais pelo condicionamento das hipermassas. A hipersincronização conduz à perda da individuação pela homogeneização dos passados individuais, arruinando o narcisismo primordial e o processo de individuação psíquica e coletiva, que permitia a distinção entre o eu e o nós, doravante confundidos na enfermidade simbólica de um amorfo e indefinido “alguém”. Nem todos são igualmente expostos ao controle. Vivemos quanto a isso uma fratura estética, como se o nós se dividisse em dois. Mas nós todos, e nossos filhos mais ainda, estamos fadados a esse sombrio destino – se nada for feito para sobrepujá-lo.

O século 20 levou ao extremo as condições e a articulação da produção e do consumo, com as tecnologias do cálculo e da informação para o controle da produção e do investimento e com as tecnologias da comunicação para o controle do consumo e dos comportamentos sociais, incluídos os comportamentos políticos. Agora, essas duas esferas integraram-se. A grande ilusão não é mais, desta vez, a “sociedade do lazer”, mas a “personalização” das necessidades individuais. Félix Guattari [20] falava de produção de “dividuais”, isto é, de particularização das singularidades pela submissão às tecnologias cognitivas.

Essas últimas permitem – por meio da identificação dos usuários (users profiling) e outros novos métodos de controle – um uso sutil do condicionamento, mobilizando tanto Pavlov quanto Freud. Assim funcionam os serviços que incitam os leitores de um livro a lerem outros livros lidos por outros leitores desse mesmo livro. Ou os mecanismos de busca que valorizam as referências mais consultadas, reforçando a consulta dessas mesmas referências.

Doravante, as mesmas máquinas digitais pilotam, pelas mesmas normas e padrões, os processos de produção das máquinas programáveis das oficinas virtuais teleguiadas pelo controle remoto, posto que a robótica industrial transformou-se essencialmente em uma mnemotecnologia de produção. Postas a serviço do marketing, elas organizam também o consumo. Ao contrário do que pensava Benjamin, não se trata do desenvolvimento de um narcisismo de massa, mas, ao inverso, da destruição massiva do narcisismo individual e coletivo pela constituição das hipermassas. Em outras palavras, trata-se da liquidação da exceção, isto é, da gregarização generalizada, induzida pela eliminação do narcisismo primordial.

Os objetos temporais industriais substituem as histórias individuais e os imaginários coletivos, tramados no interior do processo de individuação psíquica e coletiva, por padrões estandardizados de massa, que tendem a reduzir a singularidade das práticas individuais e suas características de exceções. Ora, a exceção é a regra, mas uma regra jamais formulável. Ela só é vivida na ocorrência de uma irregularidade. Não é formalizável nem calculável por um aparelho de descrição regular aplicável a todos os casos que constituem as diferentes ocorrências à revelia dessa regra. Por isso, durante muito tempo, ela foi remetida a Deus, que constituía o irregular absoluto como regra de incomparabilidade das singularidades. O marketing torna estas últimas comparáveis e categorizáveis, transformando-as em particularidades vazias, reguláveis pela captação ao mesmo tempo hipermassificada e hipersegmentada das energias libidinais.

Trata-se de uma economia antilibidinal: só é desejável aquilo que é singular e sob esse aspecto excepcional. Só desejo o que me parece excepcional. Não há desejo da banalidade, mas uma compulsão de repetição que tende à banalidade.

A psique é constituída por Eros e por Tanatos, duas tendências que se compõem incessantemente. A indústria cultural e o marketing visam impulsionar o desejo do consumo, mas, de fato, reforçam a pulsão de morte, por provocar e explorar o fenômeno compulsivo da repetição. Contrariam assim a pulsão de vida: quanto a isso, e porque o desejo é essencial ao consumo, esse processo é autodestruidor ou, como diria Jacques Derrida, auto-imunizador.

Só posso desejar a singularidade de algo na medida em que esse algo é o espelho da singularidade que eu sou, mas que ainda ignoro, e que este algo me revela. Porém, na medida em que o capital precisa hipermassificar os comportamentos, precisa também hipermassificar os desejos e gregarizar os indivíduos. A partir daí, a exceção é aquilo que deve ser combatido – o que Nietzsche antecipara afirmando que a democracia industrial só podia engendrar uma sociedade-rebanho. Eis uma verdadeira aporia da economia política industrial. Pois o controle das telas de projeção do desejo de exceção induz a tendência dominante tanatológica, isto é, entrópica. Tanatos é a submissão da ordem à desordem. Tanatos tende à equalização de tudo: é a tendência à negação de qualquer exceção.

O problema não se limita àquilo que se chama comumente “cultura”: a existência cotidiana, sob todos os seus aspectos, é submetida ao condicionamento hiperindustrial dos modos de vida. Trata-se do mais inquietante problema de ecologia industrial: as capacidades mentais, intelectuais, afetivas e estéticas da humanidade estão massivamente ameaçadas, e no momento mesmo em que os grupos humanos dispõem de meios de destruição sem precedentes.

A debandada que a ruína da libido provoca é também política. Na medida em que os responsáveis políticos adotam técnicas de marketing para se transformarem, eles próprios, em produtos, os eleitores sentem o mesmo desgosto por eles que sentem por todos os demais produtos.

Já é tempo de os cidadãos e seus representantes despertarem: a questão da singularidade tornou-se crucial e não haverá política futura que não seja uma política das singularidades – sem o que, florescerão os nacionalismos mais extremos e os fundamentalismos de toda espécie.




[1] Gilles Deleuze (1925-1965), filósofo.

[2] Pourparlers, Editions de Minuit, Paris, 2003.

[3] cf. De la misère symbolique. 1. L’époque hyperindustrielle. Galilée, Paris, 2004.

[4] Gilbert Simondon (1924-1989), filósofo.

[5] Le Monde, 10 de abril de 2002. Cf. também Aimer, s’aimer, nous aimer. Du 11 septembre au 21 avril. Galilée, Paris, 2003.

[6] Sigmund Freud, O mal-estar na civilização, Rio de Janeiro, Imago, 1997.

[7] Jean-Michel Frodon, La Projection nationale. Cinéma et nation. Paris, Odile Jacob, 1998.

[8] Walter Benjamin (1892-1940), filósofo alemão.

[9] Sigmund Freud, op. cit.

[10] Thedor W. Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), filósofos alemães, fundadores da escola de Frankfurt.

[11] Karl Kraus (1874-1936), escritor austríaco e crítico dos meios de comunicação.

[12] Tentei, em La technique et le temps. 1. Le temps du cinéma et la question du mal-être (Galilée, 2001, capítulo primeiro), demonstrar por que essa análise permanece insuficiente: os autores retomam favoravelmente o pensamento kantiano do esquematismo, sem se darem conta que as indústrias culturais requerem justamente a crítica do kantismo.

[13] Vance Packard, La Persuasion clandestine. Paris, Calmann-Lévy, 1958.

[14] Edmund Husserl (1859-1938), filósofo alemão, pai da fenomenologia.

[15] Aimer, s’aimer…, op. Cit.

[16] A sincronia designa aqui o estado da cultura em seu conjunto em um momento dado e a diacronia, as mudanças, os saltos, as evoluções que nela introduzem os indivíduos.

[17] As retenções primárias formam relações. Em uma melodia, por exemplo, as notas em arpejo que compõem intervalos e acordes ou, em uma frase, os elos semânticos e sintáticos.

[18] Esse termo se aplica “à descoberta do fato de que o eu, também ele, é investido de libido. Ele seria mesmo seu local de origem e, em certa medida, permaneceria o quartel general” (Freud, O mal-estar na civilização, op.cit.).

[19] Vocábulo grego, do qual provém a palavra “estética”, que significa “faculdade de sentir”.

[20] Félix Guattari (1930-1992), psicanalista, pioneiro da antipsiquiatria.

Le Monde Diplomatique

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