quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A Polícia da Corte - Delitos femininos


Ofício de Paulo Fernandes Viana ao ministro de Estado dos Negócios do Brasil, d. Fernando José de Portugal, abordando as ofensas cometidas por Fortunata Claudina ao seu marido, Miguel Francisco Machado, que por não ter conseguido a separação logo após o seu casamento, ofendeu-o publicamente e cometeu o crime de adultério com um homem casado. Este documento permite perceber as regras e tratamentos das relações amorosas no cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. Conjunto documental: Registros de avisos, portarias, ordens e ofícios à polícia da corte, editais, provimentos, etc.
Notação: códice 318
Datas-limite: 1808-1809
Título do fundo ou coleção: Polícia da Corte
Código do fundo: ÆE
Argumento de pesquisa: Polícia da Corte
Data do documento: 29 de novembro de 1808
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 123 e 124
“Registro do Ofício expedido ao Ministro de Estado dos Negócios do Brasil.
Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor. Conheço muito a Fortunata Claudina e seu marido Miguel Francisco Machado, que morando em uma ilha que comprou junto a Armação das Baleias, onde tem muito bom estabelecimento, ela sendo viuva ali o visitava, e o solicitou para o casamento[1] e depois que o conseguiu não só não é contente de residir ali, mas até tem disso mesmo tirado pretextos para trazer inquieto o marido, que tem por muitos meios procurado reduzi-la a bom caminho, e até há poucos dias em Casa do Vigário Geral, desenganada ela de que nenhuns meios tinha para divorciar-se, brotou em más (sic) razões, e decididamente disse que o não acompanhava, injuriando-o sempre já em público implorar o suplicante que a princípio pela satisfazer-lhe alugou casas que ainda tem na rua das Violas[2], vê com bastante desgosto que ela sempre anda por fora, apoiada por um tal Jozé Domingues casado com outra irmã. A boa ordem das coisas, o interesse destas sociedades e o geral pede que isto se coíba pela Polícia[3], e eu mesmo quis entrar neste negócio obrigando-a a acompanhar o marido, mas como não tenho um só recolhimento de mera inspeção minha onde possa meter estas mulheres teimosas[4], quando desobedecem, desiste de tomar este partido, que sendo ordenado agora por S.A.[5] poderá produzir muito bom efeito, e servirá de exemplo, a outras: O Recolhimento da Misericórdia[6] para onde o marido a quer, é ainda bem acreditado e há exemplo de receber mulheres casadas, nem haveria dúvida nisso, quando até nos conventos das freiras se tem recebido muitos, pagando-se o peso à casa, e sustentando-as os maridos e a tudo se oferece o Suplicante. Deus Guarde a Vossa Excelência. Rio[7], 29 de novembro de 1808. Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Fernando José de Portugal[8]. Paulo Fernandes Viana[9].”


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[1] A regulamentação eclesiástica do casamento deu-se a partir do Concílio de Trento (1545-1563) e consistia em um contrato de fidelidade carnal entre um homem e uma mulher para “fins de propagação”. A cerimônia no início do século XIX, deveria ser feita por escritura pública, lavrada por um tabelião e assinada por testemunhas. Isto demonstra que a troca de votos verbais, perante uma autoridade já se tornara insuficiente, necessitando de um documento legal para se obter controle das responsabilidades estabelecidas no contrato matrimonial. Este acordo constituía uma das formas de alianças, freqüentemente motivadas por interesses políticos e econômicos
[2] Atualmente rua Teófilo Otoni, era uma movimentada rua do centro da cidade do Rio de Janeiro, onde funcionava o júri. Tornou-se nacionalmente conhecida pela citação de Machado de Assis na obra “D. Casmurro”, por ser o endereço de Cosme, tio do protagonista do romance.
[3] A intendência geral da Polícia e do Estado do Brasil foi criada pelo príncipe regente d. João, através do Alvará de 10 de maio de 1808. A competência jurisdicional da colônia foi delegada a esta instituição, assim como a incumbência de organizar uma polícia eficiente e capaz de prevenir as ações consideradas “perniciosas” e subversivas. Foi a estrutura básica da atividade policial no Brasil.
[4] A condição das mulheres das camadas mais abastadas no Brasil colonial foi, de uma maneira geral, de subserviência ao poder patriarcal. Cerceada de seus direitos jurídicos, a mulher estava quase sempre à mercê de um tutor, que era, em geral, responsável e condutor de suas atividades na esfera pública. Estas mulheres, detinham um controle sobre o chamado governo doméstico e a assistência moral da família, e deveriam ser filhas, mães e esposas exemplares, uma vez que, seu bom comportamento refletia a qualidade do controle de seu tutor. Às mulheres consideradas “teimosas”, ou seja, que não se adequavam as regras de “bom comportamento” restavam as punições. Estas tendiam também, serem exemplares, como a privação de quaisquer contatos social através do recolhimento em instituições, e por vezes, o aconselhamento dos órgãos públicos de seu degredo e até mesmo prisão, para as que não se arrependessem de seus modos, ou que por ventura, tivessem ferido as leis penais.
[5] Trata-se de d. João VI (1767-1826), segundo filho de d. Maria I e d. Pedro III, que se tornou herdeiro da Coroa com a morte do primogênito José em 1788. Assumiu a regência do Reino em 1792, no impedimento da mãe que foi considerada louca. Foi sob o governo do então Príncipe Regente d. João, que Portugal enfrentou sérios problemas com a França de Napoleão Bonaparte, sendo invadido pelos exércitos franceses em 1807. Como decorrência da invasão francesa em Portugal, a família real e corte lisboeta partiram para o Brasil em novembro daquele ano, aportando em Salvador em janeiro de 1808. Dentre as medidas tomadas por d. João em relação ao Brasil estão: a abertura dos portos às nações amigas; liberação para criação de manufaturas; criação do Banco do Brasil; fundação da biblioteca pública nacional; criação de escolas e academias, e uma série de outros estabelecimentos dedicados ao ensino e à pesquisa, representando um importante fomento para o cenário cultural e social brasileiro. Em 1816, com a morte de d. Maria I, tornou-se d. João VI, Rei de Portugal, Brasil e Algarves. Em 1821, d.João VI, retornou com a corte para Portugal, deixando seu filho d. Pedro como regente. Deu-se, ainda, sob o seu governo o reconhecimento da independência do Brasil no ano de 1825.
[6] Era uma espécie de claustro para reclusão de mulheres que, embora não se consagrassem freiras, desejavam viver tal como em um convento. Foi bastante utilizado como órgão de recolhimento das chamadas “mulheres teimosas”, ou infratoras da ordem pública, como forma de punição exemplar. O recolhimento da Misericórdia está ligado a Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Atribui-se a sua criação ao padre José de Anchieta, da companhia de Jesus, por volta de 1582. Em misericórdia à frota espanhola de Diogo Flores Valdez, atacada por enfermidades, obteve autorização para erigir um galpão na rua Santa Luzia, para o tratamento dos enfermos. Anchieta teria, dessa maneira, dado origem à Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro e ao primeiro hospital da cidade.
[7] Fundada em 1565, por Estácio de Sá, a cidade do Rio de Janeiro tornou-se sede do governo colonial em 1763, adquirindo grande importância no cenário sócio-político do Brasil. O comércio marítimo entre o Rio de Janeiro, Lisboa e os portos africanos da Guiné, Angola e Moçambique constituía a principal fonte de lucro das Capitanias. As lavouras tradicionais da região eram o açúcar, o algodão e o tabaco. Com a chegada da Corte, em 1808, a cidade do Rio de Janeiro e regiões próximas sofreram inúmeras transformações, com vários melhoramentos urbanos, tornando-se referência para as demais regiões. Entre as mudanças figuram: a transferências dos órgãos da Administração Pública e da Justiça e a criação de academias, hospitais e quartéis. Importantíssimo negócio foi o tráfico de escravos trazidos, aos milhares, em navios negreiros e vendidos aos fazendeiros e comerciantes. O Rio de Janeiro foi um dos principais portos negreiros e de comércio do país.
[8] Primeiro conde e segundo marquês de Aguiar, d. Fernando José de Portugal e Castro (1752-1817) foi governador e capitão-general da Bahia durante quatorze anos. Entre 1804 e 1806, exerceu o cargo de Vice-rei do Brasil, ao final do qual retornou a Portugal, regressando ao Brasil junto com a corte portuguesa em 1808. Entre as funções que exerceu destacam-se: a presidência do Conselho Ultramarino, o cargo de conselheiro de Estado e ministro do reino, presidente do erário real, membro do conselho da Fazenda e da Junta do comércio e provedor das obras da casa real.
[9] Desembargador e ouvidor da Corte, foi nomeado pelo alvará de 10 de maio de 1808 a intendente geral da polícia da corte. De acordo com o alvará, o Intendente Geral de Polícia da Corte do Brasil, possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetido os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da segurança pública. Tinha sob seu domínio todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Entre seus feitos, destaca-se a organização da Guarda Real da polícia da corte.
Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
œ No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”
œ No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”
Ao tratar dos seguintes conteúdos:
œ Práticas e costumes coloniais
œ A manutenção do sistema colonial
œ Estrutura administrativa colonial

Arquivo Nacional

A Polícia da Corte - Atentado à moral


Ofício do intendente geral da Polícia do Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana, ao comandante da Guarda Real da Polícia da Corte, José Maria Rebelo de Andrade Vasconcelos e Souza, ordenando o envio de uma patrulha para Mataporcos a fim de realizar a prisão de soldados flagrados lavando-se nus em um chafariz da cidade em plena tarde. O documento esboça reações comuns à época diante de ações inusitadas, enfatizando ainda a desmoralização causada à tropa da polícia.

Conjunto documental: Registro da correspondência da polícia. Ofícios da polícia aos ministros de Estado, juízes do crime, câmaras, etc.
Notação: Códice 323, volume 02
Datas-limite: 1810-1812
Título do Fundo ou Coleção: Polícia da Corte
Código do fundo: ÆE
Data do documento: 05 de dezembro de 1810
Local: Rio de Janeiro
Folhas: 7 e 7v

“Registro do ofício expedido ao Comandante da Guarda Real da Polícia.
A patrulha que rondar para Mataporcos[1] recomendará a Vossa Senhoria as prisões dessa portaria: os presos fiquem no calabouço do quartel onde ou os procurarei, ou antes se ponham logo na cadeia: deve recomendar-se que façam bem a prisão pois estão muito desprevenidos. Deve Vossa Senhoria saber que os seus soldados às 2 horas da tarde de 2ª feira foram em número de 3 ou 4 lavar-se no chafariz do Campo nus com a maior indecência, e tão desenvoltos em ações e posturas que pareciam umas fúrias, e ali mesmo publicamente quiseram levar sodometicamente o pequeno tambor da Companhia. A sentinela que a essa hora estava pode dizer quem eles são, e se isto é intolerável em qualquer homem, como se há de sofrer este escândalo na tropa da polícia[2]. A decência não sofre que se escreva o que ele[s] ali fizeram.
Deus guarde a Vossa Senhoria. Rio[3] 5 de Dezembro de 1810. Paulo Fernandes Viana[4]. Il.mo Senhor José Maria Rebelo de Andrade Vasconcelos e Sousa[5].”




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[1] O logradouro Mataporcos pode indicar duas localizações: a rua de Mata-porcos e o bairro Mataporcos. A rua de Mata-porcos localizava-se na atual rua de Frei Caneca. Foi um dos primeiros locais no Rio de Janeiro a receber mudas de café trazidas do Maranhão na segunda metade do século XVIII. O bairro de Mata-porcos, hoje bairro do Estácio, ganhou esta alcunha por se tornar refúgio dos porcos dos matadouros vizinhos, no matagal que o recobria. No século XX, deu origem a primeira escola de samba do carnaval carioca: a Estácio de Sá.
[2] A intendência geral da Polícia e do Estado do Brasil foi criada pelo príncipe regente d. João, através do Alvará de 10 de maio de 1808. A competência jurisdicional da colônia foi delegada a esta instituição, assim como a incumbência de organizar uma polícia eficiente e capaz de prevenir as ações consideradas “perniciosas” e subversivas. Foi a estrutura básica da atividade policial no Brasil.
[3] Fundada em 1565, por Estácio de Sá, a cidade do Rio de Janeiro tornou-se sede do governo colonial em 1763, adquirindo grande importância no cenário sócio-político do Brasil. O comércio marítimo entre o Rio de Janeiro, Lisboa e os portos africanos da Guiné, Angola e Moçambique constituía a principal fonte de lucro das Capitanias. As lavouras tradicionais da região eram o açúcar, o algodão e o tabaco. Com a chegada da Corte, em 1808, a cidade do Rio de Janeiro e regiões próximas sofreram inúmeras transformações, com vários melhoramentos urbanos, tornando-se referência para as demais regiões. Entre as mudanças figuram: a transferências dos órgãos da Administração Pública e da Justiça e a criação de academias, hospitais e quartéis. Importantíssimo negócio foi o tráfico de escravos trazidos, aos milhares, em navios negreiros e vendidos aos fazendeiros e comerciantes. O Rio de Janeiro foi um dos principais portos negreiros e de comércio do país.
[4] Desembargador e ouvidor da Corte, foi nomeado pelo Alvará de 10 de maio de 1808 a Intendente Geral da Polícia da Corte. De acordo com o Alvará, o Intendente Geral de Polícia da Corte do Brasil, possuía jurisdição ampla e ilimitada, estando a ele submetido os ministros criminais e cíveis. Exercendo este cargo durante doze anos, atuou como uma espécie de ministro da segurança pública. Tinha sob seu domínio todos os órgãos policiais do Brasil, inclusive ouvidores gerais, alcaides maiores e menores, corregedores, inquiridores, meirinhos e capitães de estradas e assaltos. Entre seus feitos, destaca-se a organização da Guarda Real da polícia da corte.
[5] Foi o primeiro comandante da Guarda Real da Polícia da Corte (1809).


Sugestões de uso em sala de aula:
Utilização(ões) possível(is):
œ No eixo temático sobre a “História das relações sociais da cultura e do trabalho”.
œ No eixo temático sobre a “História das representações e das relações de poder”.
Ao tratar dos seguintes conteúdos:
œ Práticas e costumes coloniais
œ A manutenção do sistema colonial
œ Estrutura administrativa colonial

Arquivo Nacional

Invenções: como fazíamos sem...

Dia-a-dia durante a idade Média



Invenções: como fazíamos sem...
Conforto e praticidade eram palavras quase enigmáticas para alguém que tenha nascido no começo do século 19. Saiba o que nossas bisavós faziam para se virar sem geladeira, talheres, móveis ou privadas
por Bárbara Soalheiro
Se há um cômodo imprescindível em uma casa, esse é o banheiro, certo? Não se você tiver nascido há mais ou menos 200 anos. Até a metade do século 19, nem os palácios mais luxuosos tinham privadas ou banheiras. E não era só isso que faltava. Objetos tão indispensáveis para nós, como geladeira, máquina de lavar ou camas, só se difundiram a partir do século 20. Sem esses aparatos, a rotina há até bem pouco tempo era difícil, regrada e malcheirosa.

... Banho

O costume de banhos é a prova de que não são exatamente os tempos que determinam as tradições, mas o caráter de cada povo. Já no século 19 – enquanto os europeus fugiam da água como se ela fosse praga –, os banhos públicos eram um dos programas favoritos dos japoneses. Na Europa medieval, as casas tinham tinas com água e eram usadas para a limpeza de algumas partes do corpo. A idéia de banhar-se com freqüência era tão absurda que, quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, em 1500, ficou espantado ao ver que os índios entravam na água mais de dez vezes por dia. Até o século 19, acreditava-se na Europa que banhos facilitariam a entrada de germes, já a água quente dilatava os poros. Só no fim do século 18 é que os médicos começaram a recomendar que as pessoas se lavassem com maior freqüência. Mesmo assim, as recomendações restringiam-se a algumas partes do corpo, como as mãos e o rosto. As banheiras com escoamento de água chegaram às Américas por meio de Benjamin Franklin em 1790. Mas os banhos demoraram a tornar-se uma rotina. Quando a rainha Victoria chegou ao Palácio de Buckingham, em 1837, não havia banheira no lugar e até 1870 pouquíssimas casas dispunham do aparato.

... Geladeira

Estocar carnes e frutas era uma tarefa árdua até o século 19. Na Europa, para aumentar a validade desses alimentos, os homens salgavam as carnes, secavam as frutas e deixavam-nos em um quartinho escuro, longe da luz e do calor. Já no Brasil, a abundância de frutas frescas tornava o estoque desnecessário. Quanto às carnes, em vez de guardá-las em locais escuros, os brasileiros deixavam-nas expostas ao sol. O costume deu origem à carne-de-sol, tão comum no Nordeste do país. No século 18, os ricos europeus criaram as primeiras geladeiras: um buraco em alguma parte da casa, cheio de gelo ou neve e palha. Havia até mesmo um profissional, responsável por buscar a neve nas montanhas, os “geladeiros”. Eles recolhiam neve no inverno e estocavam em poços escavados em partes altas das cidades, para vender no verão. “A comida durava de um inverno a outro”, diz Raffaella Sarti, professora de história da Universidade de Urbino, na Itália. Foi só no século 19 que apareceram as primeiras geladeiras. O inventor americano Jacob Perkins patenteou, em 1834, a primeira máquina refrigeradora que usava éter em um ciclo de compressão de vapor (mais tarde, o líquido foi substituído por amônia e hidrogênio). As geladeiras eram restritas aos ricos até a metade do século 20, quando começaram a se popularizar.

... Móveis

As casas européias comuns, até o século 16, pareciam salões de festas: sem divisões de cômodos e com os pouquíismos móveis que existiam até então. As roupas e os raros objetos pessoais da gente comum eram guardados em cestos. No século 19, esses cestos foram substituídos por baús, que também serviam de assentos. Mesas e cadeiras só tornaram-se comuns durante o século 18. As camas, que existiam desde a época grega, eram um luxo para poucos e, aqui no Brasil, chegavam a fazer parte do dote de moças. Pobres e ricos dormiam no chão, sobre um pouco de palha, mas visitantes tinham que ser recebidos em leitos. No Brasil, sob influência dos costumes indígenas, escravos e empregados dormiam em redes feitas de palha.

... Calefação

A falta de calefação nunca foi um problema brasileiro, mas para os países europeus, obrigados a enfrentar invernos rigorosos, era necessário arrumar maneiras de manter os ambientes e o corpo quentes. Antes do surgimento da eletricidade e do gás, as pessoas usavam lenha, carvão e palha para esquentar as casas. Os mais pobres chegavam a usar esterco, que queimava muito bem, mas obviamente exalava um cheiro detestável. A lareira foi inventada no século 12, na Itália, enquanto em países do norte da Europa as pessoas dormiam perto dos fogões a lenha. Ricos usavam um tipo de cobertor de metal, que era recheado com brasas e colocado entre os lençóis antes que a pessoa fosse dormir. Os mais pobres dormiam, muitas vezes, nos estábulos e nas estâncias com animais, para esquentar-se.

... Sabão e máquina de lavar

Sabão foi um produto caro durante séculos. Para lavar roupas, mulheres utilizavam uma mistura de água com urina, já que essa continha amoníaco que clareava a roupa. No século 13, a indústria de sabão chegou à França, vinda da Itália e da Espanha, com sabões feitos de gordura de cabra e cinza de plantas. Depois de muito tempo, a gordura animal foi substituída por azeite de oliva. Mas, na hora de lavar roupa, sabão não era o único problema em um mundo sem água corrente. Era quase impossível lavar qualquer coisa em casa. O mais comum é que mulheres fossem até os chafarizes, no centro da cidade, ou até os rios (um costume ainda comum no interior do Brasil). No século 19, apareceram as primeiras lavadoras manuais, que lavavam e escorriam a roupa. E foi só no século 20 que apareceram as lavadoras elétricas. Mais precisamente, em 1910, quando o americano Alva Fischer patenteou uma máquina com um motor que fazia girar um tambor onde se colocava água e sabão.

... Privadas

Pode parecer estranho, mas os maiores beneficiados com a invenção de privadas não foram aqueles com vontade de usar o toalete, mas os transeuntes das ruas das capitais. Antes de o utensílio ser inventado, homens e mulheres faziam suas necessidades em baldes e despejavam o conteúdo nas ruas. Em Paris, para alertar os que passavam, gritavam “Água vá!” antes de jogar fezes e urina pela janela. No Rio de Janeiro ou em Salvador, nem isso. Os nobres tinham lacaios ou escravos para segurar os urinóis e as latrinas. Mas muita gente virava-se como podia. Crianças, por exemplo, iam até a porta de casa e faziam xixi na rua, tranqüilamente. Em 1597, John Harington inventou o primeiro WC (water closet ou armário de água) de que se tem notícia: um assento de madeira, uma caixa-d’água e uma válvula de descarga. Ele instalou sua obra prima para a rainha Elizabeth I no palácio de Richmond. O aparelho era caro e a maioria das pessoas tinha de esperar pela fila em banheiros públicos. Na segunda metade do século 19, começaram a funcionar os sistemas de encanamento subterrâneos que permitiam o escoamento dos dejetos. “As galerias subterrâneas são os órgãos da cidade grande e vão trabalhar da mesma maneira que os órgãos humanos, mas sem serem reveladas”, teria dito o prefeito francês Georges-Eugène Haussmann em 1858.

... Fósforos

O palito de madeira com cabeça química não parece uma invenção das mais modernas. Mas é. Até o acendedor de fogão alimentado com álcool, criado em 1823, surgiu antes. Foi em 1827 que o químico John Walker criou os fósforos de fricção. Mas o uso do instrumento só popularizou-se depois da segunda metade do século 19, quando o sueco Johan Edvard Lundstrom patenteou palitos mais seguros. Antes disso, acender o fogão dava um trabalho pré-histórico e, exatamente por isso, era uma tarefa de empregados. Além de um bocado de material extremamente seco (palha, feltro ou outro retalho) e de duas pedras, eram necessários paciência e destreza. O interessado em ver qualquer coisa pegar fogo tinha de esfregar as pontas dos pedaços de pedra bem perto do material que servia de pavio. Depois de muitas tentativas, alguma faísca prendia-se ao material seco. Nessa hora, era preciso aumentar o volume de palha e torcer para que o fogo se espalhasse. Com tanto trabalho, não é de se estranhar que, já no século 20, o inglês Maurice Baring tenha escrito, por meio de seu personagem Jean François, a Balada do Paraíso Imaginário, com o verso Remember this, the worst of human ills: life without matches is a dismal thing (Lembre-se disso, a pior doença humana: a vida sem fósforos é uma coisa fúnebre). Achou que a pior parte de um guisado era descascar as cebolas?

... Cuecas e calcinhas

Até o século 19, a maioria das mulheres não usava nenhum tipo de roupa íntima. Quando vestiam algo por baixo da roupa comum, eram peças largas. As roupas íntimas ajustadas ao corpo, como conhecemos hoje, são um invento bastante recente. No século 18, calcinhas eram consideradas vestes de prostitutas e atrizes (palavras que, na época, eram quase sinônimo). Já a cueca é um costume antigo: desde o século 6, influenciados pelos celtas, homens vestiam cueca de diversos tipos, justa, larga, curta ou comprida. No século 14, as favoritas eram compridas e usadas por cima da roupa comum, demarcando a genitália. Quando os espartilhos se popularizaram, a partir do século 18, eram tão apertados que faziam as mulheres desmaiar. Em, 1859 um jornal parisiense relata a morte de uma jovem, da qual todas as rivais admiravam a cintura fina e conta que, durante a necrópsia, se verificou que o fígado estava perfurado por três costelas. “Eis como se pode morrer aos 23 anos, não de tifo nem de parto, mas por causa de um espartilho”, concluía o artigo.

... Máquina de costura

A primeira máquina doméstica foi a de costura. A idéia de que um aparato mecânico podia realizar uma tarefa tão “manual” e enfadonha dava a ela um caráter quase milagroso. A primeira patente de uma máquina de costura foi concedida em 1790, ao americano Thomas Saint, mas historiadores acreditam que ela nunca tenha saído do papel. A mais famosa máquina de costura foi patenteada pelo alemão Isaac Singer, em 1857 (tanto que seu sobrenome virou sinônimo do instrumento por muitos anos). Alguns modelos, movidos por um motor a gás, eram barulhentos e até perigosos. Ainda assim, eram preferíveis ao trabalho de coser à mão. Isso tudo num tempo que comprar roupas prontas era coisa para os ricos.

... Talheres

Facas, garfos e colheres utilizam um mecanismo tão simples que parecem terem sido inventados em um passado remoto. E foram. Mas seu uso só popularizou-se da maneira como utilizamos hoje durante o século 18. Ou seja, até bem pouco tempo atrás, os participantes de qualquer refeição (desde os almoços triviais até grandes banquetes) usavam as mãos para pegar a comida do prato. A falta de talheres influenciava também o cardápio nas mesas nobres. “Durante os séculos 18 e 19, as pessoas comuns comiam espaguete com as mãos. Quando o garfo foi inventado, massa virou comida para a realeza também, porque agora eles podiam comer sem perder a dignidade”, diz a americana Linda Stradley, especialista em culinária. Talvez tenha sido por isso que os italianos se interessaram logo por talhares. Já no século 16, eles eram os únicos na Europa que comiam com garfos e facas individuais. Na Inglaterra e França, as mesas só tinham duas ou três facas. Todos serviam-se da mesma travessa, usando as mãos. As sopas eram colocadas em uma mesma tigela, de onde bebiam duas, três ou mais pessoas. Talheres eram tão raros que apareciam em testamentos e garfos chegavam a ser malvistos pela Igreja. “Deus em sua sabedoria deu ao homem garfos naturais – seus dedos. Assim, é um insulto a Ele substituí-los por garfos de metal”, diziam os padres no século 18, segundo James Cross Giblin em From Hand to Mouth (Da Mão à Boca, sem versão em português). Apesar de ter aparecido mais cedo, guardanapos também estiveram de fora das refeições por muitos séculos. Até o ano 1400, mais ou menos, homens e mulheres assoavam o nariz ou limpavam a boca nas próprias mãos. As mesmas mãos que serviam da travessa coletiva.

... Relógio

Desde tempos remotos, o homem mede o tempo pela observação da natureza e dos planetas. Mais tarde, surgiram os relógios de sol, de areia e de água. É claro que nenhum deles marcava o tempo com muita precisão, mas a rotina de nossos antepassados tampouco exigia esse tipo de rigor. O calendário agrícola, com o calendário religioso, regia a vida nas sociedades. Foi no século 13 que apareceram os primeiros relógios mecânicos. No século 16, Galileu criou o modelo de pêndulo. Só com a revolução industrial, no século 18, e com as jornadas de trabalho rígidas é que relógios individuais passaram a ser fabricados. Mesmo assim, o uso massivo só popularizou-se durante o século 20.



O jeito brasileiro
Cada povo ou país se virava como podia antes que os aparelhos modernos se espalhassem pelo mundo. Saiba como nós, brasileiros, vivíamos sem...
... Ferro elétrico

Se lavar roupas já dava trabalho, imagine deixá-las tão esticadas quanto mandava a moda do século 19. Antes da eletricidade, a maioria dos ferros tinha uma cavidade onde se colocavam brasas quentes. Outros, nem isso, e era preciso esquentá-los direto no fogo, repetindo a operação sempre que esfriava. Para deixar a roupa mais lisa, usava-se farinha de mandioca e água para fazer uma espécie de grude fino que ficou conhecido como goma (daí a expressão “engomar a roupa”). Depois de seca, a peça era mergulhada em uma bacia que continha água e um pouco da goma e colocada ao sol novamente. Algumas mulheres também espalhavam cera de vela para dar mais brilho aos vestidos.

... Geladeira

Quando o escritor brasileiro Mário Souto Maior chegou com um refrigerador a querosene em Bom Jardim, interior de Pernambuco, a cidade parou para ver. “Foi uma loucura. Todo mundo ia lá em casa só para olhar o aparelho”, afirma Carmem Souto Maior, viúva de Mário. Ela não se lembra bem da data, mas foi só a partir da década de 30 que as famílias brasileiras começaram a comprar geladeira importada dos Estados Unidos. A principal mudança na casa foi o tamanho da despensa. “Antes, ela era enorme. Havia várias mantas de carne-de-sol e cestas cheias de ovos. Muita coisa estragava e o estoque tinha de ser maior”, diz Carmem. A outra vantagem do refrigerador foi variar o cardápio. “Finalmente, dava para guardar a carne crua. Antes, o melhor jeito de conservar era assando. E eu não agüentava mais comer carne assada!”

... Telefone

Antes de os aparelhos de telefone se popularizarem, o que só ocorreu a partir da metade do século 20, transmitir recados era penoso e demorado. Quem podia, contratava um contínuo, uma espécie de office-boy do século passado. “Quando ficava trabalhando em casa, sem aparecer na repartição, o ministro queria o contínuo perto de si, pronto para receber, introduzir ou mandar embora os visitantes, ou levar à secretaria, rapidamente, qualquer ordem de sua excelência. Naquele tempo não havia telefone”, escreveu Arthur de Azevedo no conto As Barbas de Romualdo. O primeiro aparelho telefônico brasileiro foi instalado na residência de dom Pedro II, em 1877, apenas um ano depois de a invenção ser patenteada pelo escocês Alexander Graham Bell.

... Ventilador

O calor dos trópicos deve ter sido a maior motivação para a patente que Américo Cincinatto Lopes registrou no Rio de Janeiro, em 1883: um ventilador doméstico. De acordo com o livro A Vida Cotidiana no Brasil Nacional, editado pelo Centro de Memória da Eletricidade, da Eletrobrás, o registro de Lopes chegou seis anos antes do projeto de ventilador portátil que George Westinghouse desenvolveu nos Estados Unidos. Antes disso, o jeito mais comum de refrescar-se nas casas e ruas brasileiras era usando leques ou outros materiais para abanar. Ambientes muito grandes e fechados tornavam-se um problema para arquitetos. Quando construíram o Teatro da Paz, na capital do Pará, em 1868, os responsáveis tiveram de desenvolver um sistema de ventilação especial. Sem isso, seria impossível ver ou apresentar qualquer espetáculo no teatro cheio de gente em uma cidade tão quente quanto Belém. Assim, criou-se um ventilador manual que era movido sobre o forro. As saídas de ar foram localizadas embaixo das cadeiras. Também por causa do calor, os assentos não podiam ser de couro ou tecido e, por isso, foram feitos de palha.


Saiba mais
Livros

A Vida Cotidiana no Brasil Nacional, Org. Marilza Elizardo Brito, Centro de Memória da Eletricidade, 2001 - O livro mostra como a eletricidade mudou o Brasil a partir do século 19 e reúne 225 imagens da época, entre fotos e anúncios de jornal

From Hand to Mouth, James Cross Giblin, Harper Collins Publishers, 1987 - Giblin contextualiza a invenção dos talheres, mostrando como foram inseridos na rotina de diversas sociedades

História da Vida Privada no Brasil, Volume 1, Vários autores, Companhia das Letras, 1998 - A livro é uma obra prima para quem quer entender a vida cotidiana no Brasil colonial. Cada capítulo trata um tema diferente. O terceiro, “Família e vida doméstica”, explica como índios, escravos e nobres se viravam com as tarefas do dia-a-dia

Vita di Casa – Abitare, Mangiare, Vestire nell’ Europa Moderna, Raffaella Sarti, Laterza, 2002 - Detalhes de como era a vida cotidiana na Europa, com destaque para o dia-a-dia na Itália, país de origem da historiadora.

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Revista Aventuras na Historia

Superstições e Religiosidade na Res Publica: Espaços de Poder?(1)


A proposta deste texto é discutir as ligações entre religião e profecia como formas de poder em Tito Lívio.

Luís Filipe Silvério LimaNo século II a.C., o historiador grego Políbio, em sua História, comentando sobre a alta religiosidade em Roma, indica como uma das razões para a superioridade da república romana (e de sua estabilidade) o uso das superstições para conter a massa popular “por temores invisíveis e por criações semelhantes a imaginação” (POLÍBIO, 1985: IV, 56). Moses I. Finley, buscando as origens da estabilidade e autoridade nas cidades-Estado do mundo clássico, remete, em uma curta digressão sobre o papel da religiosidade neste contexto, a essas impressões do historiador grego (FINLEY, 1983: 26).
O autor inglês, contudo, vê nessas manifestações religiosas não mais do que um fator residual para legitimar o sistema como um todo. Não considera a religião como quesito decisivo ou sequer suficiente “in the process by wich such great authority was acquired by the system and then maintained for a long time” (FINLEY, 1983: 27). Para compreender esse processo parcialmente, vai construir – sem, porém, negar a importância dos aspectos culturais (2) – seu texto a partir de explicações calcadas nas relações materiais dentro das esferas estatais e sociais, e entre estas. De certa forma, Finley, em sua análise, desmonta a afirmação de Políbio, mesmo tendo percebido o enorme imbricamento entre a liturgia, como no caso dos auspícios, e a vida sócio-política no mundo clássico.

Partindo desta reflexão de Finley sobre o poder no mundo clássico, tentamos encontrar na História de Roma, de Tito Lívio, evidências que nos possibilitassem uma reflexão sobre o papel da religião na Roma republicana. A religião, neste caso, faz-se essencial para examinarmos as estruturas e relações de poder, constituintes da sociedade e da civitas romana.

Enquanto Políbio escreveu em momento de grande expansão do império romano – foi espectador da queda de Cartago –, Tito Lívio começou sua obra na década de 30 a.C., período precedido por grandes batalhas intestinas, no qual se atropelou o mos. Somente com a vitória de Otaviano, tornado Augusto e príncipe do Senado, foram as portas do templo de Jano Quirino cerradas (Res Gestae, 13). Esta nova configuração de poder rompeu com a debilitada República romana. Centralizado na figura de Augusto, que possuía, naquele momento, o imperium dos cônsules e pretores e o caráter sacrossanto dos tribunos da plebe, inaugurou-se o que posteriormente se denominou o Império. Essa ruptura, porém, não se fez no discurso, Otaviano, nos seus dizeres, transferiu “o governo da república, passando-o da minha pessoa [de Augusto] às mãos do senado e do povo romano” (Res Gestae, 34).

Cientes do contexto de turbulência e restruturação de Roma em que se escreveu a obra, foi que compulsamos Lívio (3). Preocupados com as práticas e manifestações religiosas, viramo-nos para um ponto convergente nos textos de Políbio e Finley: as superstições, nos dizeres do historiógrafo grego, ou ainda, os auspícios e prodígios. Para tanto, analisamos o livro XLI, catalogando o grande número de prodígios e auspícios, razão da escolha. Além deste, iremos usar trechos de outros livros da História de Roma, nos quais percebemos relações com o objetivo proposto. Estes outros, entretanto, vão ser limitados a um pequeno espectro temporal dentro da narração liviana, com algumas exceções, pois não intendemos perder o fio condutor estabelecido no livro XLI.

Antes, porém, tentaremos definir as diferenças entre auspícios e prodígios. Auspícios são sinais de Júpiter para nos fazer conhecer sua vontade e aprovação, percebidos através de consultas realizadas pelos magistrados e sacerdotes romanos, nos assuntos públicos (auspicia publica) e em situações extraordinárias (SCHEID, 1991: 54-5). No dicionário Mythologie et Antiquités Grecques et Romaines (LAVEDAN, 1931), ainda encontramos sua classificação pelas funções e tipos, sendo de nosso interesse os auspicia ex avibus e auspicia ex tripudiis, na convocação dos comícios, e os auspícios de guerra (auspicia bellica), para iniciar ou continuar uma guerra e/ou batalha, ou mesmo sua estratégia - ainda há nesse sentido uma divisão aos vários auspicios relativos a vida da Urbs, ou de Roma enquanto cidade-Estado possuidora de vida política e social, o auspicia urbana, e essa segunda divisão, os auspicios de guerra, ligados a consulta à Júpiter em momentos de guerra. (LAVEDAN, 1931: 145-6). Temos em Lívio exemplos, a título de ilustração, de auspícios de guerra:

(…) não desejando [os cônsules] atacar o inimigo pelo mesmo lado, sortearam as direções que tomariam. Quanto a [o cônsul Cláudio] Valério, o sorteio se realizou incontestavelmente de acordo as exigências dos auspícios, pois aconteceu dentro do espaço consagrado (…) (XLI, 18);

na convocação de comícios:

(…) Quinto Petílio ficou encarregado de, logo que os auspícios o permitissem, reunir os comícios para dar substituto ao colega (…) (XLI, 16).

Era considerado de bom agouro que os auspícios atingissem seus objetivos na primeira tentativa, como vemos no caso da guerra contra o rei Antíoco, nos consulados de Públio Cornélio Cipião e Mânio Acílio Glabrião:

(...) Todos esses sacrifícios foram auspiciosos; desde as primeiras vítimas os presságios se mostraram favoráveis, de sorte que os arúspices responderam que “aquela guerra alargaria as fronteiras do povo romano, estando em vista uma vitória e um triunfo”. (Livro XXXVI, 1)

E, obviamente, ocorria no caso inverso.

Os prodígios também eram sinais enviados pelos deuses (4), entretanto, vinham, enquanto fatos extraordinários, no sentido de uma revelação, não na acepção da teologia cristã, de suas vontades e humores; não constituíam, como os auspícios, consultas ao divino, pedindo aprovação ou legitimação dos atos da vida romana. Seus sinais, quando não prontamente resolvidos pelos magistrados (5), eram interpretados pelo pontífice e colégio pontificial, ou pelo colégio dos áugures, que consultavam, nos casos mais graves, os Livros Sibilinos. Depois encaminhava-se a liturgia – auspícios, suplicações, sacrifícios – necessária (LAVEDAN, 1931). Iremos transcrever, à guisa da exemplificação, dois casos narrados por Tito Lívio, o primeiro com a ação dos cônsules, o segundo com a dos pontífices:

(…) A fim de expiar esses prodígios, os cônsules imolaram vítimas adultas e determinaram uma suplicação de um dia em todos os santuários (XLI, 9);

(…) em Túsculo, avistara-se uma tocha no céu; em Gábios, o templo de Apolo e diversas residências foram feridas pelo raio, sucedendo o mesmo a um muro e uma porta em Graviscas. Ordenaram os senadores que esses prodígios fossem expiados segundo prescrição dos pontíficies (XLI, 16). (6)

Presentes no livro XLI, os prodígios permeiam uma série de vitórias e êxitos militares, além dos inícios políticos da guerra contra a Macedônia, que se tornará uma importante conquista romana. Através desse conteúdo bélico não é possível alinhavar os acontecimentos narrados dentro do espectro religioso, indicador aqui do desagrado de Júpiter, causando um descolamento entre a campanha militar, favorável, e os sinais divinos, normalmente desfavoráveis. Quais seriam, então, os possíveis motivos olímpicos da interferência divina? Para tentar alcançar esta questão, favoravelmente, iremos elencar rapidamente os prodígios ocorridos entre o período abarcado pelo livro, 178-174 a.C.

Os primeiros prodígios ocorrem nos consulados de Caio Cláudio Pulcro e Tibério Semprônio Graco, em 177 a.C., antes que sorteassem as províncias da Ístria e Sardenha entre eles, na forma de pedra caída no bosque sagrado de Marte, um recém-nascido sem membros, uma serpente de quatro patas, fogo celeste e raio. E enquanto se divulgavam tais prodígios, na própria Roma um lobo foi perseguido pelas ruas; entrando pela porta Colina, escapou pela porta Esquilina (XLI, 9).

Ainda sob o consulado de Cláudio e Graco, outros anunciaram-se. Um pássaro feriu uma pedra sagrada, uma vaca falou, uma estátua de bronze, representando uma novilha é coberta por um touro (XLI, 13). No ano de 176 a.C., apareceram uma tocha no céu e um raio danifica construções e o templo de Apolo (XLI, 16). Nasceram, no ano seguinte, crianças com duas cabeças, sem mão, com dentes; houve arco-íris em dia de sol sem chuva; surgiram três sóis e meteoritos no céu, e uma serpente flamejante em cidades; além de um boi falante (XLI, 21).

Enfeixando cada grupo de portentos (7) com os outros acontecimentos narrados no livro, não encontramos em todos correlações diretas, ou, pelo menos, nem todo prodígio era acompanhado de um fato significativo. Temos como exemplo o primeiro caso dos descritos acima, no qual, após o aparecimento dos prodígios, os cônsules levaram adiante com êxito as batalhas contra os sardos e ístrios.

Por outro lado, os últimos ocorreram em um momento de peste em Roma, onde muitos habitantes morreram dificultando o recrutamento de soldados. A epidemia prolongada, que, no ano anterior, atacara o gado, havia levado o Senado a decretar que os decênviros consultassem os livros sibilinos (XLI, 21).

Há ainda no texto de Lívio, uma terceira variante. O segundo conjunto de prodígios anunciados no ano de 177 a.C., no qual um xofrango (8) bicara uma pedra sagrada, uma vaca falara, uma novilha de bronze fora aspergida de esperma por um touro (XLI, 13), foi seguido pela morte do pontífice Marco Cláudio Marcelo (que fôra cônsul e censor). Se estabelecermos alguma relação entre esses portentos e o falecimento do pontífice – é importante frisar que Lívio não fez essa ponte –, criamos uma terceira categoria de sinais divinos, os presságios, no caso relacionados à morte de um bonus, caracterizando um omen de morte. Os presságios, favoráveis ou não, eram indícios divinos dos acontecimentos futuros, diversos das consultas auspiciais, que originavam presságios, ou dos prodígios (9).

É importante notar a existência de casos, nos quais esses três tipos de evento se relacionam, aos pares, mormente, costurando-se com os acontecimentos. Um exemplo, entre presságio e auspício, citado anteriormente, está em XLI, 18:

(…) não desejando [os cônsules] atacar o inimigo pelo mesmo lado, sortearam as direções que tomariam. Quanto a [o cônsul Cláudio] Valério, o sorteio se realizou incontestavelmente de acordo as exigências dos auspícios, pois aconteceu dentro do espaço consagrado; mas, relativamente a Petílio, os áugures declararam posteriormente que o rito fora viciado, uma vez que (…) a sorte que lançara na urna (…) Petílio ergueu acampamento face à cadeia formada pelos montes Leto e Balista (…) E ali, ao que se diz, arengando aos soldados reunidos em assembléia, anunciou à guisa de presságio, mas sem notar para ambigüidade do termo, que no mesmo dia tomaria Leto. (…) [o cônsul Petílio, durante a batalha, já vitoriosa] avançando com excessiva imprudência adiante das insígnias, caiu varado por uma dardo. (…) O que se passou não foi apenas o resultado manifesto de um presságio sinistro: também se ouviu de um pulário (10) que houvera falha na tomada dos auspícios, fato que o cônsul não ignorava.

A não observância correta dos auspícios, e a não percepção do duplo significado entre tomar o Leto (Letum capturum), a montanha, e letum, falecimento, levaram o cônsul Quinto Petílio ‘a ganhar’ a morte. Um exemplo, ligando prodígio e presságio, é o dado nos infrutíferos sacrifícios levados adiante por Cneu Cornélio e Quinto Petílio, no momento da investidura do consulado. Petílio, ao imolar um boi em homenagem a Júpiter, não encontrou a ponta do fígado, sendo mandado novamente pelo Senado sacrificar gado até obter a satisfação (XLI, 14). Depois, Cneu Cornélio entrou no Senado

(…) com o semblante desfeito e informou aos senadores que o fígado do boi scesnaris que imolara se liqüefizera (…) enquanto o resto das vísceras permanecia intacto, o fígado fora inteiramente devorado por indiscritível podridão. Não bastasse o fato de os Senadores se assustarem com o prodígio, o outro cônsul aumentou-lhes ainda mais a inquietação: declarou que não conseguira obter presságio favorável depois de sacrificar três bois, todos sem ponta de fígado (XLI, 15).

Aqui o prodígio, caracterizado na dissolução e inexistência do fígado, indica maus presságios. O Senado, ciente disso, mandou seguir com quantos sacrifícios fossem necessários até a obtenção dos resultados favoráveis; alcançados de todos os deuses, só da Salvação [Salus], ao que se diz, Petílio, não os pôde obter (XLI, 15). Como visto anteriormente, o cônsul Petílio morreu em batalha, não tendo observado corretamente os auspícios; entretanto, mesmo sem líder, a vitória foi romana.

Seu colega de magistratura, Cneu Cornélio, morrera antes, durante um impasse, pela não observância dos procedimentos religiosos, diante às datas das Férias Latinas – de caráter fortemente litúrgico. As superstições, alimentadas pelo impasse, segundo Lívio, foram aumentadas por este falecimento e pelos prodígios que se seguiram. Para substituí-lo, Quinto Petílio precisou consultar os deuses, através da permissão dos auspícios, no intuito de convocar novos comícios. O Senado por sua vez, fez realizar as medidas indicadas pelos pontífices para se voltar a normalidade (XLI, 16).

Nestes dois casos dos cônsules, terminando em falecimentos, todo o mau presságio se concretiza em termos individuais. É o cônsul Quinto Petílio morto em batalha, quem sofre, segundo se diz – destacaria Tito Lívio –, a não execução devida dos auspícios e o omen desfavorável. O povo romano representado no exército foi vitorioso, alcançou seu objetivo, mesmo só tendo um dos cônsules, Cláudio Valério, obtido nos auspícios de guerra presságios favoráveis.

Não ocorre neste episódio, como no caso da peste (XLI, 21), uma possível interrelação entre os sinais divinos, no caso, os prodígios, e Roma como um todo orgânico. O caso de Petílio assemelha-se a história do censor Quinto Fúlvio.

Tito Lívio nos conta no livro XLII, 3, no ano de 173 a.C., que o templo de Juno Lacínia havia sido conspurcado, pois o censor, intentando usar o belo teto de mármore em um templo por ele erguido na Espanha, destelhara o edifício. Este ato sacrílego foi repudiado imediatamente pelo Senado, acusando e injuriando o censor, cuja função, segundo os Senadores, incluía a manutenção do costume e dos prédios públicos e religiosos. Findo o episódio, as telhas devolvidas, porém não colocadas apropriadamente, o censor continua suas funções normalmente, mesmo tendo implicado

(…) o povo romano numa ação sacrílega, a de levantar templos com derrubados, como se os deuses imortais não fossem os mesmos em toda a parte (11) e devessem ser paramentados e honrados com os despojos uns dos outros. (XLII,3).

No ano seguinte, porém, Quinto Fulvio morre, tendo deixado a magistratura censorial e agora como pontífice, suicidando-se na forca. Tito Lívio aponta como motivo a dor e a inquietude ao saber dos filhos que morreram no exército da Ilíria. Coloca ainda a história corrente

(…) que, finda a censura, perdera a razão, murmurando-se que aquilo era a conseqüência da cólera de Juno Lacínia, cujo templo ele profanara e que por isso lhe perdera o espírito (XLII, 29).

A vingança divina por parte de Juno, nesta versão ‘supersticiosa’ para o suicídio de Quinto Fúlvio, não recaiu sobre o povo romano – nem dentro das concepções da época, narradas e recriadas por Tito Lívio. Foi sobre o censor, como indivíduo, que recaiu a pena pelo sacrilégio do destelhamento, mesmo o Senado tendo indicado a implicância disto sobre o populum Romanum (XLII, 3).

Tal qual no caso do Censor Cneu Cornélio, as implicações religiosas, dentro de Lívio, caíram sobre o homem, não sobre o cidadão ou magistrado nem sobre Roma e seu povo. Longe de formular um hipótese, esses dois casos comparados indicam uma possível problematização, dentro do texto, entre as esferas do privado e do público (12), no âmbito da religião. Em ambos episódios, como em outros, há uma divisão tênue e indutiva, posta no corria que, ao que se diz, pois se ouviu, entre o acontecimento político e o fato místico, religioso. Tito Lívio explica-se assim:

(…) Não ignoro que, em virtude da mesma indiferença que nos faz duvidar, hoje em dia, dos sinais enviados pelos deuses, não mais se anunciam prodígios oficialmente, nem são eles mencionados já nos anais. Quanto a mim – ao escrever a história dos tempos antigos, fiz-me, não sei como, uma alma antiga –, um certo escrúpulo impede que considere indignos de relato certos acontecimentos que homens cheios de sabedoria daquelas épocas não hesitaram em transformar em objeto de consultas oficiais (XLIII, 13).

Nesta justificativa, Lívio aponta, de modo ou outro, uma crítica a sua contemporaniedade, defendendo a sabedoria dos tempos ulteriores – a tradição, o mos maiorum – e, transformando-se em um deles ao relatar-nos suas histórias, eleva-se para mostrar o passado como exemplo para o futuro, dentro de uma concepção universalista e total do império romano. Neste transporte do narrador pelo tempo, estabelece-se uma contraposição entre Tito Lívio, num momento de mudança e restruturação política, e Políbio, no auge da estrutura política buscada por Lívio. Sob o aspecto da religião, estabelecemos nesse diálogo pistas para, através dos autores, uma possível periodização sobre o poder social da religião, que necessariamente deve ser completada e verificada em uma pesquisa mais ampla das fontes.

Neste sentido, o texto de John Scheid, “O sacerdote”, ilumina amplamente a discussão (SCHEID, 1991). O autor descreve a liturgia envolvida nos auspícios, demonstrando que todo o complexo ritualístico envolvido, onde os magistrados eram normalmente os líderes, tinha por trás uma intenção pragmática de reafirmar na figura do sacerdote os desejos do povo romano, sem qualquer intromissão individual. Mais do que isso, o forte formalismo dos auspícios levava não a uma consulta no sentido de uma permissão por parte de Júpiter ou dos outros deuses, mas sim no viés de uma confirmação, dada a priori como certa desde o pacto ancestral da fundação romana. Segundo Scheid, é na perfeição ritualística que a divindade está interessada, e só quando esta não é observada corretamente há o descontentamento, como no caso de Cneu Cornélio. Os reais humores dos deuses são dados através de “fenómenos espetaculares e ameaçadores” (SCHEID, 1991: 66), os prodígios.

Indo para além do autor e aquém de uma constatação, podemos rascunhar uma primeva classificação no qual o não cumprimento das conformidades ritualísticas nos auspícios e o desrespeito ao sagrado gerariam, nos episódios analisados, a desgraça individual, privada - Quinto Fulvio sofre somente depois de deixar a magistratura, com a morte de seus filhos
(XLII, 29) - , enquanto, como no caso da peste (XLI, 21), os prodígios representariam complicações coletivas, públicas - isto, talvez pelo fato de, ao desrespeitar o sagrado, o magistrado, como representante eleito pelo povo e/ou empossado pelo Senado (os constituintes da Res publica), perca essa esfera, ou ainda, ao sair desses cargos representativos, e responda aos deuses no âmbito do privado.

Voltando ao aspecto da autoridade, Scheid mostra-nos que ao empossar um cargo sacerdotal – e os magistrados o faziam – se revestia de um poder, não só religioso, mas representativo de toda Roma. Esta prática, amplamente demonstrada em Lívio, com os cônsules executando os auspícios e o Senado sendo palco das decisões e consultas nos momentos de dúvida e prodígios, nos remete ao texto de Finley, na discussão inicial. Quais os espaços de poder e autoridade, política e social, da religião no mundo romano da República?

Ao retomarmos a História de Roma, de Lívio, perceberemos que todos os problemas tangentes e tangíveis às manifestações divinas, demonstrados nos prodígios, auspícios e presságios, são resolvidos de forma pontual, não-oracular nem revelatória, na acepção cristã, e, senão obtido o resultado desejável, são tentadas até o êxito. Como coloca Scheid (1991: 67), há em Roma sempre uma solução pragmática e formal para o obter o sucesso. Em Tito Lívio, esta solução vem do poder dos magistrados, do Senado, que consulta os colégios sacerdotais. A religião entra então como mais um afirmador do destino manifesto de Roma, só que através da elite, dos boni, das esferas do poder instituído, eternos mantenedores do mos maiorum, não importando seu conteúdo, mas sim seu conceito. Mesmo Lívio não demonstrando crer, e contando que não mais se dava a importância, no final do século I a.C., aos sinais divinos, eles aparecem como, dentro de uma visão do passado, essenciais para a res publica. Uma res publica vista a partir de cima, hierarquicamente interessada no desenrolar político, onde as personagens principais são os magistrados e o Senado, ou seja, a aristocracia romana.

Infelizmente, mesmo a partir dessa hipótese indutiva, não se torna possível resolver a questão proposta no início. Não somos capazes, com o material compulsado, estabelecer um parâmetro crítico que argumentaria, corroborando ou não, com a tese de Finley. A religião assume aqui um papel na constituição da autoridade, e portanto da diferença entre os cidadãos romanos, na esfera das idéias e crenças, mas se restringe a isso, não alcançando os níveis do fazer política (“policy”), como já advogado por Finley. Fica necessário em uma segunda etapa estabelecer o quão profundos são esses níveis de poder e autoridade constituídos pela religião, e quanto contribuem para entender as diferenças na sociedade romana graduando entre os boni até os improbii, numa busca da compreensão da civitas republicana.



Fontes
LIVIO, Tito. História de Roma (intr., trad. e notas de Paulo Matos Peixoto). São Paulo: Paumape, 1989, 6 vol.

LIVY. Livy (trad. de Evan T. Sage e Alfred C. Schlesinger). Loeb Classical Library 12. Cambridge: Harvard University Press, 1991.

POLÍBIO. História. Brasília: Ed. Univ. de Brasília, 1985.

Res Gestae divi avgvsti (trad. Giovanni D. Leoni). São Paulo: Politipo, 1957.

Bibliografia

FINLEY, M. I.. Politcs in the Ancient World. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

LAVEDAN, Pierre. Mytologie et Antiquités Grecques et Romaines. Paris: Librarie Hachette, 1931.

SCHEID, John. “O sacerdote”. In: GIARDINA, Andrea (dir.). O homem romano. Lisboa: Ed. Presença, 1991, p. 49-72.

VEYNE, Paul. “O império romano”. In: ARIÉS, Philippe & DUBY, Georges. História da vida privada I - Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

Notas

1) Este texto originou-se de um trabalho de curso da profa. Maria Luiza Corassin, a quem agradecemos pelo apoio, leitura e comentários.

(2) O autor inglês considera que, para atingir a compreensão da estabilidade política, das relações de poder e da forte hierarquia social das cidades-Estado, é necessário "a history of the material realtions both between the state and its citizens and among the citizens and class of citizens, a hitory of war, ‘national’ pride and patriotism, and a history of ideology in all its sense, including both consciously and unconsciously held ideas, beliefs, culural norms, values." (FINLEY, 1983: 27)

(3) Usamos aqui duas edições do Ab urbe condita libri: a tradução brasileira para o português, de Paulo Matos Peixoto (1989), e a da coleção Loeb Classical Library, edição bilíngüe latim-inglês (1991). Tendo em vista o maior uso da edição em português, os trechos citados serão da edição brasileira, nos remetendo, quando necessário, à edição inglesa. Além disso, citeremos Tito Lívio somente pela numeração do livro e capítulo, sem citar as edições.

4) Paul Veyne discorre sobre a pluralidade semântica que as palavras deus(es) e divino assumem em Roma, tanto na República como no Império, onde podem significar tanto Júpiter, como o conjunto de deuses, visto como categoria única, ou ainda enquanto referente a carecterísticas sobre-humanas. (VEYNE, 1990 : 204-4, 206-8)

5) Apesar de não ser colocado no dicionário compulsado, a interpretação e resolução - por exemplo, nas formas de sacrifícios e imolações - dos prodígios podiam, como pelo menos indica Tito Livio (XLI, 9, 14, 15), muitas vezes ser resolvidas no âmbito senatorial. E, como coloca John Scheid, os sacerdotes, em estrito censo, eram mormente coadjuvantes do momento religioso, onde os senadores eram os "mestres" no palco litúrgico. Neste sentido, há uma passagem em Tito Livio na qual o Senado, como instâncio superior da Res publica, aprova e ordena o encaminhamento liturgíco dos pontíficies, portanto sem autonomia no caso: Ordenaram os senadores que os prodígiod fossem expiados segundo prescrição dos pontíficies (XLI, 16); (LAVEDAN, 1931: 802; SCHEID, 1991: 54-5, 63, 65-7).

6) vide nota anterior

(7) Uma possível análise poderia ser agrupar os portentos anunciado, por aproximação, em três blocos, usando um critério temático de aparição: os animais (os bovinos, aparição de serpentes), humanos (relativos ao nascimento) e os divinos (celestes e relacionados à territórios consagrados). Sem tentar entrar no campo da simbologia, os classificaríamos talvez de forma hierarquizada, através da escala divino>homem>animal, proposta por Veyne, cotejando os eventos com o tipo de prodígio (VEYNE, 1990: 203).

8) Na edição brasileira, traduziu-se avem sanqualem como um xofrango, sentido que se encontra em alguns dicionários. A edição Loeb, por sua vez, mantém o termo em latim ("a bird, called sanqualis"), indicando em nota as versões de Festo, que defende a definição de ossifragus, e portanto, corroborando com a tradução por xofrango, e de Plínio, posicionando-se, sem grande certeza, a favor da relação da palavra com o nome do deus Sangus.

(9) Na bibliografia consultada e na leitura de Tito Lívio, não há indicações de que existisse uma temporalidade específica para os prodígios, não definindo se ocorriam quando em momento de desagrado anterior dos deuses, como um presságio, durante ou num instante logo posterior. Isto talvez não tenha sido traçado com êxito ao compulsarmos a História de Roma pela própria falta de correlação estabelecida por Livio, na maior parte das vezes, entre os presságios/prodígios e os eventos subseqüentes, e, quando o faz, usa a voz dos antigos, indicando que àquele momento viam os romanos o evento como um presságio.

(10) Pullarius era o cuidador das galinhas sagradas, usadas comumente nos auspícios de guerra, para identicar a favorabilidade dos presságios.

(11) Veyne indica que os romanos assumiam uma identificação lingüística, baseada nesse pressuposto, como se os deuses imortais não fossem os mesmos em toda a parte, com os deuses dos outros povos, aliados ou não, por exemplo o caso de Júpiter que se nomeia em Zeus, em grego (VEYNE, 1990: p. 202-3).

(12) No sentido dado por Veyne, (1990: 164).
Revista Mirabilia

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A PALCO ARMADO: “TEATRO DE ARENA – UMA ESTÉTICA DE RESISTÊNCIA”



POR IZAÍAS ALMADA
Talitta Tatiane Martins Freitas*
Universidade Federal de Uberlândia – UFU
talittatmf@gmail.com

Ao analisarmos a década de 1960, deparamo-nos com um dos movimentos culturais mais importantes do país, o Teatro de Arena, que se tornou um símbolo de nacionalismo e resistência democrática. Buscando resgatar as particularidades desse movimento, Izaías Almada escreveu o livro Teatro de Arena: uma estética de resistência1.

Este livro faz parte da coleção Paulicéia, coordenada por Emir Sader que aborda eventos políticos, sociais e culturais de grande importância para o estado de São Paulo. Todavia esta importância, no caso do Arena, estende-se por grande parte do país.

Neste sentido, a perspectiva de Almada foi a de buscar lembranças e opiniões de ex-integrantes do Teatro de Arena e de pessoas que, de uma forma ou de outra, foram contemporâneos às muitas atividades que o grupo desenvolveu. Izaías, um dos atores do Arena entre os anos de 1964 a 1969, organizou neste livro entrevistas e reflexões sobre o dia-a-dia do grupo, de forma que podemos dividi-lo em cinco partes. Em um primeiro momento, contextualizou o surgimento do Arena, a partir das atividades do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e da Escola de Arte Dramática (EAD), para, em seguida, dar espaço às entrevistas dos pioneiros; às reminiscências históricas dos Seminários de Dramaturgia, e depoimentos das fases de nacionalização dos clássicos e dos musicais. Por último, depoimentos de atores e dramaturgos do Arena que acompanharam o encerramento das atividades do grupo.

O Arena, situado à Rua Teodoro Baima – 94, onde atualmente funciona a Sala Experimental Eugênio Kusnet, foi o palco de uma nova forma de se conceber o teatro “nacional”. Décio de Almeida Prado, crítico teatral, falecido em 2000, analisou o contexto em que surgiu o Teatro de Arena, recordando como era a cena cultural com o TBC e com a criação da EAD, onde foi professor do então aluno José Renato, um dos criadores do Arena. Essa forma de teatro apresentou-se, no inicio, como uma maneira barata de encenar, já que com o palco em forma de arena não era necessário o investimento em grandes cenários. Eram valorizados, nesse caso, os figurinos e a própria interpretação do ator. Posteriormente, em especial, com a encenação de “Eles não usam Black-tie”, em 1958, as ideologias dos seus integrantes foram estabelecendo o que hoje conhecemos como teatro “revolucionário” o que, para muitos entrava, em contraste com os teatros apresentados até então.

Essa nova forma de teatro, voltado para uma estética de esquerda e com discussões sobre a realidade do país, chamou a atenção de vários segmentos da sociedade, já que personagens como empregadas domésticas e operários em greve, por exemplo, antes não haviam sido protagonistas de uma peça de teatro. “O Arena foi a valorização das peças de conteúdo social, dos autores nacionais, uma transformação. [...] O Arena foi, de fato, um sopro inovador no teatro brasileiro” (p. 44), sopro este que a jornalista Regina Helena de Paiva Ramos vivenciou e transcreveu durante dezessete anos em que trabalhou, no jornal Gazeta, como crítica teatral. Durante esse tempo, as apresentações do Arena renderam muitos comentários e entrevistas na coluna feminina assinada por Regina , uma opção diferente em um período em que os jornais destinavam esse tipo de coluna para publicação de receitas e dicas de comportamento.
Além da própria trajetória do Teatro de Arena, há nesse livro particularidades do cotidiano de mulheres e homens que viveram esse instigante e turbulento período da história do Brasil. Histórias como a de Vera Gertel, casada com Vianinha e ligada à
Juventude Comunista, que conta como era ser atriz, mulher e militante nessa sociedade. Nas entrelinhas apreendemos também, a história de pessoas que não participaram do Arena, mas que também foram atuantes na modificação das suas realidades.

Por meio das lembranças que esse livro evoca, saltam aos olhos do leitor a importância do trabalho de grupos de teatro permanentes, cada vez mais difícil no mundo contemporâneo. É claro que muito já foi escrito sobre o Arena durante todos esses anos, mas a maior parte dos livros o retratam de forma factual ou cronológica, deixando de lado o fato de que esses jovens possuíam uma sociabilidade que não pode ser deixada de lado.

Neste ponto de vista, a relação artista, obra e seu tempo se faz presente quando deparamo-nos com as entrevistas. Elas demonstram que o Arena não foi fruto de um plano pré-elaborado por única pessoa. Na verdade, ele foi se construindo e se modificando com o passar dos anos, de acordo com as transformações que ocorriam no cenário nacional e mundial. Sendo assim, atores e dramaturgos fizeram parte do processo de criação, no qual o texto e a cena contribuíram para a consolidação de um grupo que primava por uma consciência social e política. “O Teatro de Arena atravessou 20 anos da história do Brasil e era natural que nesse período buscasse a cada momento orientar-se estética e politicamente de acordo com os ideais dos seus principais integrantes, homens e mulheres de esquerda, de origem pequeno-burguesa, alguns dos quais ligados ao Partido Comunista Brasileiro” (p. 94).

Além da preocupação com o engajamento social, havia também uma atenção especial com a própria formação do ator, sendo Augusto Boal um dos maiores incentivadores desta política. Devido seu interesse pela ciência teatral, isto é, pela necessidade de se refletir sobre os textos a serem encenados e/ou mesmo escritos, Boal idealizou os Seminários de Dramaturgia com o intuito de propiciar uma ampla discussão acerca do papel do teatro e do ator. Boal, segundo Roberto Freire, expunha os seus conceitos e conhecimentos sobre teatro, uma vez que era ele quem mais se preocupava com esse aspecto “científico” decorrente de um curso de dramaturgia feito nos Estados Unidos, com John Gassner.

No entanto, não podemos nos esquecer, que durante todos esses anos, o Teatro de Arena recebeu várias críticas por seu modo de enxergar a realidade. Muitos, até hoje, alegam que foi um grupo fechado, limitado pelas próprias ideologias, que dividia o mundo entre “bons” e “maus”. Entretanto, este era um período pós-guerra, em que o maniqueísmo encontrava-se presente não somente no Brasil, mas também em todo o mundo. Porém, em nosso país, com o advento do golpe de 1964, as questões políticos-culturais tiveram colorações próprias.

Como exemplo desse procedimento, pode-se recordar Arena Conta Tiradentes. Neste espetáculo, usufruindo da liberdade poética, os autores tomaram uma ação como modelo e a recriaram a seu modo, inserindo-a no debate de seu tempo. Assim sendo, tais peças não possuíam um aparato meramente histórico, mas tratavam de uma resignificação do tema liberdade, inserido em uma nova realidade e, como tal, deverá ser analisado em sua própria historicidade.

De modo geral, percebe-se, no decorrer do livro, que as histórias dos integrantes do Arena vão se entrecruzando. Pessoas com trajetórias tão distintas, que, em um primeiro momento acreditamos não ter nenhuma ligação, encontram-se e identificam-se com os projetos e com as utopias daquela fase combativa do Arena. A cantora Marília Medalha nunca havia pensado em ser atriz e acabou participando da peça Arena conta Zumbi. Outro que entrou no Arena de forma inesperada foi David José que participou das montagens de Tartufo e Arena Conta Tiradentes, entre outros: “A Tupi tinha um time de futebol [...] cujo técnico era o Lima Duarte. Então em 1963 [...] eu fui ver o Lima e depois lhe disse que gostaria de trabalhar no Arena. [...] Então, foi via Lima Duarte e Guarnieri que eu fui parar no Teatro de Arena” (p. 111).

Segundo o Almada, mesmo as memórias que não se remetessem especificamente ao Arena foram preservadas para configurar um painel histórico, social e cultural mais abrangente do que se passava em São Paulo e no país. Assim sendo, histórias peculiares – para não dizer hilárias – foram mantidas no decorrer do livro. Por exemplo, devido o palco ser entre as platéias, o Arena proporcionava uma intimidade muito grande com o público, que por sua vez, se sentindo à vontade, por diversas vezes interferia no espetáculo, fazendo os seus comentários ou, até mesmo, invadindo a cena. Outras histórias, também muito interessantes, ocorreram fora do palco. Em viagens, ou mesmo em São Paulo, muitos integrantes moravam juntos em apartamentos ou no próprio teatro. Essa convivência tão estreita gerou, em muitos casos, atritos, boas gargalhadas e, é claro, para o leitor, uma maior intimidade com todos os entrevistados.

Além dos atores e dramaturgos, o livro não se esquece de homenagear outros integrantes que não necessariamente ficavam no palco. Personagens como o iluminador Orion de Carvalho, o porteiro e vigia Antonio Ronco, além da platéia, foram citados
com carinho pelos entrevistados. Segundo Izaías Almada, estes tinham um verdadeiro laço de amor com o Arena e faziam de tudo para que o teatro pudesse continuar, mesmo durante o período mais ferrenho da ditadura, com o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) ameaçando invadir o prédio.

Por ter escolhido esse caminho, contrário aos interesses dos que se encontravam no poder, era natural que o Arena desaparecesse durante o período da ditadura civil-militar que governou o país de 1964 a 1984. Todavia, não foi sem luta que isto ocorreu. O Arena deu vida aos musicais Zumbi e Tiradentes e ao show Opinião, no Rio de Janeiro; montou espetáculos como O inspetor geral (Gogol), Arena canta Bahia e a Primeira Feira Paulista de Opinião.

Após 1968, com o aumento da tensão política, muito dos integrantes do Arena foram presos e torturados. Mesmo assim, os trabalhos continuaram. A Primeira Feira Paulista de Opinião, por exemplo, foi um espetáculo que reuniu artistas de várias áreas para exprimir a insatisfação de todos quanto à censura e a falta de liberdade de expressão. Porém, o sucesso de público dessa peça somente fez aumentar o conflito já existente, entre militares e os integrantes do teatro, que foram reprimidos de forma violenta. Essa censura, porém, segundo Gianfrancesco Guarnieri, serviu para mobilizar a classe teatral, que conseguiu uma vitória ao pressionar o governo e obter, por meio de um grupo de trabalho, a elaboração de um anteprojeto para a nova censura.

Com o fim das atividades do Arena, seus integrantes dispersaram-se ou criaram outras alianças. Contudo, a experiência que esse tipo de teatro proporcionou ainda influencia suas carreiras, seja na forma de atuar, seja na forma de conceber o que é teatro. Apesar das diferenças estabelecidas com a nova geração de atores, de uma forma ou de outra, o legado que o Arena deixou ainda será parâmetro para que muitos possam aprimorar-se no teatro.

Aqueles que fizeram parte deste livro trazem em suas histórias de vida um pouco da própria História do Brasil. Na medida em que nos debruçamos nessa leitura acabamos adquirindo um pouco mais de consciência do papel do teatro para a consolidação de uma sociedade democrática, porque, como bem observou Antonio Fagundes, em seu depoimento a Izaías Almada: No teatro é preciso jogar com a própria alma, é preciso ter uma paixão, uma paixão pela comunicação.


* Graduanda em História pela Universidade Federal de Uberlândia e integrante do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura – NEHAC.
1 ALMADA, Izaías. Teatro de Arena: uma estética de resistência. São Paulo: Boitempo, 2004.

Revista Fênix

História e ficção na França Antártica

Ana Arruda Callado

Professora Aposentada - Doutora em Comunicação Social – Escola de Comunicação – UFRJ – 22290-240 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: aacallado@hotmail.com

Há cerca de cinco anos, foi realizado um seminário neste mesmo Museu Histórico Nacional com o tema "A história é outra estória". À mesa, o cineasta Sílvio Tendler, especialista em filmes documentários históricos, os escritores Marina Colasanti e José Roberto Torero, o qual havia lançado há pouco e com muito sucesso seu O Chalaça, e eu. Falamos todos mais ou menos sobre a mesma coisa: a dificuldade que há em separar, delimitar história e ficção, embora na platéia alguns historiadores ficassem um tanto aborrecidos pelo fato de não darmos grande crédito aos documentos - Quem os elaborou e a serviço de quem? Quem os guardou e com quais intenções? Os documentos perdidos, ou propositalmente destruídos, não provariam outra coisa? - foram alguns dos questionamentos. Os maiores aplausos da platéia naquela tarde foram para Torero, especialmente quando respondeu à pergunta: "O que é verdade e o que é ficção em seu livro?"

"O que eu escrevi, o que eu inventei, é tudo verdade, pois fui eu quem escreveu. Agora, os documentos que usei, não sei. Não respondo por eles", disse.

Estamos aqui falando da França Antártica, episódio histórico que deu nascimento a grande quantidade de obras incluídas na historiografia, algumas básicas, e, ao mesmo tempo, boas obras de ficção. As fontes primárias para todas elas são, principalmente, os livros dos cronistas franceses que aqui estiveram com Villegagnon, particularmente Jean de Léry e André Thevet. Devemos considerar Léry e Thevet como historiadores? Isto é, devemos considerar seus relatos parte da História, aquela com h e às vezes até com H maiúsculo?

Vejamos alguns pequenos trechos retirados dos admiráveis livros desses cronistas, A cosmografia universal e História de uma viagem feita à terra do Brasil, também chamada América publicados, respectivamente, em 1575 e 1580. (As citações têm origem nas edições preparadas pela Fundação Darcy Ribeiro e ainda em fase de editoração, não havendo, portanto, paginação definitiva.)

Diz o franciscano Thevet, ao descrever plantas e animais da França Antártica, nome que, aliás, ele assegura ter cunhado:

"Existe ainda uma árvore muito alta, mais que a mencionada anteriormente, e que se encontra em todo o país, e a que os bárbaros chamam de Amahut (trata-se da imbaúba, árvore de cujas folhas e brotos se alimenta, preferencialmente, o bicho-preguiça), na qual fica habitualmente um animal tão disforme e quase inacreditável para quem não o tenha visto por sua experiência; chama-na Haût, ou Haüthi, porque são [os nativos] de opinião que se alimenta das folhas da mencionada árvore Amahut. Este animal é do mesmo tamanho de um grande macaco que se traz da África, e tem o ventre caído quase até o chão, mesmo de pé. O rosto e a cabeça são quase semelhantes aos de uma criança, e sua carne é tão desagradável para comer como a de um dogue velho, pois é grosseira e sem gosto; acrescente-se a isso que os selvagens da região têm a louca convicção de acreditar que quem a coma, mal conseguiria escapar das mãos de seus inimigos, já que é lento para caminhar, o que dizem de vários outros animais, como já falei antes. Quando esse Haüt é capturado, solta grandes suspiros, exatamente como faria um homem sofrendo de uma grande e excessiva dor; é coberto de pêlos muito claros e de cor cinzenta. Tem apenas três unhas em cada pata, com quatro dedos de comprimento, com a forma das arestas de uma carpa, e com essas garras sobe nas árvores, onde fica muito mais tempo que na terra; a cauda tem apenas um comprimento de três dedos, como podem ver no desenho que aqui aparece tirado do natural. De resto, o Haüt é um caso muito estranho, pois jamais homem vivo poderia dizer que o viu comer qualquer coisa, apesar de os selvagens os terem mantido durante muito tempo (como eles mesmos me contaram) em suas habitações, para ver se comia alguma coisa. No que eu não acreditaria, se não tivesse tido a prova."

Thevet então conta como guardou um bicho-preguiça durante muito tempo e este não comeu coisa alguma. Daí ele ter afirmado no título do capítulo e na legenda do desenho: "o animal que só vive de vento".

O exemplo a seguir que selecionei de Jean de Léry é mais impressionante, porque o que ele afirma foi repetido por outros escritores da época. Ao falar das privações que haviam passado durante a travessia marítima da França ao Rio de Janeiro, informa:

"Havia também as chuvas das vizinhanças do Equador que não só são fétidas como pestilentas; batendo na pele de alguém provocam pústulas e grandes bolhas, chegando mesmo a manchar e estragar as roupas. Além disso, o sol era fortíssimo e grande o sofrimento causado pelo calor e, fora de duas parcas refeições, não tínhamos água doce nem outra bebida em quantidade suficiente. Sofríamos assim tão cruelmente a sede que quase cheguei a perder a respiração e a ficar sem fala durante mais de uma hora, donde se compreende que o que mais desejam os marinheiros nessas viagens longas é ver o mar convertido em água doce."

O final deste trecho dá a entender, para mim, que o sol e a sede influíram na descrição que o cronista faz da chuva equatorial.

Temos que levar em conta também que estes dois escritores e homens de conhecimentos científicos bastante respeitáveis na época acusaram-se mutuamente de mentirosos. Não a propósito de chuvas ou animais monstruosos, mas sobre o que de fato se passava entre católicos e calvinistas na colônia francesa. Villegagnon, para um, vilão, para outro, herói, foi o motivo maior da discórdia. Vejamos as palavras empregadas por Léry no prefácio de seu livro:

"Ao verificar, neste ano de 1577, pela literatura da Cosmografia de Thévet, que não somente repetia ele suas mentiras [as do livro Singularidades da França Antártica] e ampliava seus primeiros erros (sem dúvida na esperança de que todos estivéssemos enterrados ou não ousássemos contradizê-lo) mas ainda se valia da oportunidade para caluniar com digressões falsas e injuriosas os ministros e imputar mil crimes aos que, como eu, os acompanharam em 1556 à terra do Brasil para ir ter com Villegagnon, vi-me compelido a dar à luz o relato de nossa viagem."

Mentiroso é como também o autor da Cosmografia, em texto posterior, História de duas viagens, qualifica Jean de Léry.

Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1982, o colombiano Gabriel García Márquez falou dos relatos fantasiosos dos primeiros viajantes europeus à América, justificando seu "realismo mágico" como o gênero mais adequado à região. Iniciou com o exemplo do livro navegador florentino Francesco Antonio Pigafetta [nascido em 1491 e morto em 1534], que acompanhou Fernão de Magalhães em sua viagem que pretendia realizar a circunavegação do globo terrestre. Pigafetta foi dos poucos sobreviventes da expedição a voltar à Espanha com Juan Sebastián Elcano.

(Aliás, sobre esta trágica viagem de Magalhães há um romance interessantíssimo, Maluco, do uruguaio Napoleon Ponce de Leon, que recebeu o Prêmio Casa de Las Americas, de Havana, em 1989. O livro foi publicado no Brasil em 1992, pela Companhia das Letras, de São Paulo, com tradução de Eric Nepomuceno.)

Pigafetta conta que viu, na América do Sul, entre outras coisas bastante extravagantes, porcos com o umbigo no lombo, pássaros sem patas cujas fêmeas chocavam seus ovos nas costas do macho e um animal com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de veado e relincho de cavalo.

García Máquez citou ainda, para reforçar sua tese, o fato de Eldorado ter figurado em numerosos mapas, mudando de lugar e de forma segundo a fantasia dos cartógrafos, e a realização, por Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, de uma expedição que durante oito anos percorreu o norte do México em busca da Fonte da Eterna Juventude.

Voltando à França Antártica, quero citar um artigo de Monique Augras, doutora pela Universidade de Paris, pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, na revista Estudos Históricos (volume 4, número 7, de 1991). No artigo intitulado "Imaginária França Antártica", Monique faz uma advertência que interessa muito ao tema de nossa mesa:

"Não existe percepção objetiva. Todo registro perceptivo supõe uma seleção de elementos significativos para o sujeito, a partir da estruturação da interação entre o organismo e seu meio. Nesse processo, intervêm aspectos tanto culturais quanto psicofísiológicos. Aos viajantes, era impossível olhar a nova paisagem da costa brasileira, sem recorrer a um esquema perceptivo/interpretativo já estabelecido. Desejos e expectativas filtravam a sua visão. Em sua bagagem, misturavam-se informações eruditas e populares, tradições cristãs e lendas antigas, alguns versos de Ovídio e páginas de escritores contemporâneos.

Para o homem do século XVI, conhecer o mundo é decifrar a obra de Deus. Essa nova natureza que se oferece à contemplação dificulta o entendimento. Será preciso isolar elementos que, interpretados em função de sua relativa semelhança com coisas já conhecidas, se transformarão em signos. A paisagem enigmática acabará sendo lida como se fosse uma mensagem." (p. 21)

As referências à pureza e à bondade dos indígenas brasileiros, que deram origem ao mito do "bom selvagem", nos relatos de Thevet e Léry mesclam-se a adjetivos terríveis, principalmente quando condenam a nudez e o canibalismo - hoje posto em dúvida pelos estudiosos, principalmente como hábito generalizado - dos "bárbaros". As índias, principalmente, são alvo da rejeição dos dois cronistas, que ora falam de sua maldade, ora de seu despudor; Thevet utiliza para elas o termo "cadelas". Monique Augras explica:

"À medida que os pensadores europeus se vão desencantando com sua própria sociedade, o suposto 'estado de natureza' passa a ser valorizado. É esta a posição de Montaigne que, ouvindo o relato de um daqueles marinheiros que se fixara 'por 10 ou 12 anos no lugar onde Villegagnon se assentou, e que apelidou de França Antártica', chega à conclusão de que 'nada há que seja bárbaro ou selvagem nessa nação, a não ser que cada qual chama de bárbaro aquilo que não faz parte dos seus costumes'. Desgostoso com as atrocidades perpetradas por católicos e protestantes no decorrer das Guerras de Religião, Montaigne sonha com homens vivendo em estado de inocência original. Como bem observou Todorov (1989), na verdade Montaigne está menos interessado nas reais condições de vida dos tupinambás do que na denúncia das inadequações de sua própria sociedade". ( p. 24)

Enfim, todas essas considerações nos levam a reafirmar que quase sempre vale mais a versão do que o fato.

Os livros de Serge Elmalan, Villegagnon e a utopia tropical, e de Chermont de Britto, Vilegagnon o rei do Brasil são romances, pertencem ao reino da ficção; mas são tão ricos de informações quanto Villegagnon e a França Antártica, de Vasco Mariz e Lucien Provencal. E este é de tão saborosa leitura quanto aqueles. Enfim, é muito difícil traçar limite entre história e ficção, mais ainda quando estamos nos referindo à França Antártica.

Revista Historia - UNESP

Villegagnon: herói ou vilão?

Vasco Mariz

Jornalista, editor, escritor e Secretário Geral da Association Dialogue France-Brésil. Em 2000, publicou "Villegagnon ou a utopia tropical" com prefácio de Jean-Christophe Ruffin, uma obra que retrata a efêmera epopéia da França Antártica. E-mail: vasco.mariz@globo.com

Villegagnon é um dos personagens mais massacrados de nossa história. A principal causa desse curioso fenômeno foi a freqüente reedição ao longo dos séculos do livro Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Léry, e a repercussão da pequena História dos Mártires, de Jean Crespin entre os historiadores. Pela primeira vez publicado em Paris, em 1578, o livro de Léry agradou imensamente pela pitoresca e pormenorizada descrição do Brasil quinhentista. Villegagnon é o vilão. Recentemente, em 1991, o historiador naval francês Leonce Peillard publicou em Paris um excelente livro intitulado Villegagnon, Vice-amiral de Bretagne et Vice-roi du Brésil (Edições Perrin), que apresenta valiosas pesquisas recentes, explica e absolve Villegagnon de muitas acusações dos calvinistas, que pesavam sobre a sua imagem histórica há mais de quatro séculos.

Villegagnon era originário da pequena nobreza francesa, nascido em 1510, na cidade de Provins, a 80 km de Paris, na região hoje tão conhecida dos famosos queijos Brie. Teve ótima formação universitária em Paris e Orleans e na rigorosa Ordem de Malta, atuando primeiramente como correio diplomático do rei Francisco 1º. Depois combateu na Itália, onde se adestrou no manejo das armas da época até ser destacado para acompanhar a esquadra do imperador Carlos V em seu projetado ataque a Argel. A frota imperial era imensa e deveria ser bem sucedida, não fosse uma terrível tempestade que dispersou as naus e deixou isolados em terra boa parte dos soldados imperiais. Os sarracenos contra-atacaram e Villegagnon, à frente dos cavaleiros de Malta, bateu-se denodadamente diante dos muros da cidade e acabou ferido no braço esquerdo por um golpe de lança. Carlos V assistiu de perto a bravura de Villegagnon e o confortou com palavras de agradecimento, e até mesmo o legado do Papa escreveu ao rei Francisco 1º louvando o feito de Villegagnon. Esse episódio lhe seria de muita utilidade no futuro, pois por duas vezes ele recorreu ao imperador, que se recordava dele com simpatia e sempre atendeu a seus pedidos. Na época, Villegagnon escreveu um pequeno livro em latim, relatando a expedição de Carlos V a Argel.

No entanto, Villegagnon só ficou famoso na Europa pelo seqüestro de Maria Stuart, a futura rainha da Escócia, que o rei Henrique II da França queria para noiva de seu filho menor, depois Francisco II. Já os ingleses protestantes ambicionavam a menina para rainha da Inglaterra, com o objetivo de incorporarem a Escócia católica. Villegagnon comandava quatro galeras e, em vez de se dirigir diretamente à costa leste do país, conseguiu burlar o bloqueio da esquadra inglesa dando a volta à ilha pela Irlanda e norte da Escócia, atravessando mares turbulentos. Chegou à foz do Clyde e subiu o rio até a fortaleza de Dumbarton, onde estava refugiada Maria Stuart. Embarcou a menina de cinco anos e o seu séquito e regressou pela mesma difícil rota, chegando a um pequeno porto francês perto de Brest. Dias depois, ela era recebida com toda a pompa pelo rei Henrique II no castelo de Saint Germain-en-Laye, nos arredores de Paris. Se Villegagnon tivesse fracassado e a menina capturada pelos ingleses, a história da Europa no século XVI poderia ter sido bem diferente. O rapto foi sensacional e os ingleses foram humilhados. O futuro almirante tinha 38 anos apenas.

Destacou-se depois na defesa de Malta, sede da sua Ordem, e com apenas um punhado de cavaleiros reforçou as defesas da ilha e conseguiu afugentar a esquadra turca que pretendia apossar-se da ilha. Até hoje podemos visitar, na velha capital M'Dina, a Villegagnon Street, homenagem de agradecimento do povo maltês pela sua defesa da ilha 450 anos atrás. Pouco depois, ele recebeu o título de Vice-almirante da Bretanha das mãos do rei Henrique II e sua próxima missão foi a de fortalecer o porto de Brest, cujas defesas estavam mal conservadas e vulneráveis a ataques de corsários ingleses e espanhóis.

O almirante, em sua carreira militar, teve a proteção pessoal direta de quatro reis de França, isto é: de Francisco 1º, Henrique II, Francisco II e Carlos IX, além da rainha regente Catarina de Médicis e também do imperador Carlos V, cuja vida Villegagnon havia diretamente defendido no malogrado cerco de Argel. Além disso, pelo seu preparo intelectual, Villegagnon era escritor, falava várias línguas e foi amigo pessoal de dois dos mais importantes poetas franceses da época, Rabelais e Ronsard, que escreveu um poema em seu louvor, chamando-o de douto. Portanto, ele não era um aventureiro desalmado como pintaram os calvinistas, ávido de ouro e sangue, como seus contemporâneos Pizarro e Cortéz nas Américas.

Villegagnon começou a pensar no Brasil em Brest, onde conversava com marinheiros que regressavam de viagens à América do Sul. Em Dieppe e Honfleur, ele teria encontrado com André Thevet e Hans Staden que estiveram em nosso país e ouviu também os grandes armadores normandos e bretões donos das naus que faziam o comércio tão lucrativo com o Brasil. Em 1554, Villegagnon fez uma rápida viagem até o Cabo Frio e informou-se de tudo o que era necessário para organizar uma base naval e militar na Guanabara. De volta, motivou armadores e cortesãos para obter financiamento de uma importante expedição ao Brasil. O rei Henrique II designou-o para uma missão que não quis especificar com clareza e não lhe deu nenhum título novo além do que já detinha, isto é, de Vice-almirante da Bretanha. Por isso, é fantasioso o titulo de Vice-rei do Brasil que alguns historiadores e romancistas lhe atribuíram. Seus grandes biógrafos franceses Heulhard e Peillard chamaram-no generosamente de Roi d'Amérique e de Vice-roi du Brési, o que não é exato.

Villegagnon chegou à Guanabara a 10 de novembro de 1555, com uma tripulação muito heterogênea de 600 homens e sua missão era exclusivamente militar e comercial, isto é: construir uma forte base naval para dar apoio ao já intenso e lucrativo tráfego comercial entre os portos franceses da Mancha e a costa brasileira. Como segundo objetivo a médio prazo, Villegagnon pretendia atacar os navios portugueses e espanhóis que voltavam das Índias, carregados de especiarias, e do Rio da Prata, com o ouro do Peru e a prata da Bolívia.

Os navegadores franceses se entendiam muito bem com os indígenas, que os apoiaram até o fim. Preparavam os toros de pau-brasil e acaju, aprisionavam papagaios, araras e micos, estocavam pimenta e ficavam à espera da chegada das naus francesas. Os franceses traziam tecidos de cores vivas, machados, facas, espelhos, anzóis, quinquilharias em geral, que eram trocados pelos produtos da terra brasileira. O almirante cultivou a amizade dos indígenas e do seu chefe Cunhambebe. Ele tomava aulas diárias de tupi e chegou a completar um dicionário tupi-francês que iniciara com André Thevet. Ele era muito mais compreensivo com as faltas dos indígenas selvagens do que com os erros de seus turbulentos franceses, chamados pelos índios de "papagaios amarelos", porque falavam muito e tinham cabelos louros.

Villegagnon começou por construir o forte Coligny na ilha que hoje leva o seu nome e agora abriga a nossa Escola Naval. Para edificar essa fortaleza contou com o apoio voluntário dos indígenas, chefiados pelo legendário chefe indígena Cunhambebe, de quem se fez amigo. Escolheu a praia do Flamengo, defronte à ilha, como base de operações em terra e lá fundou, no início de 1556, em homenagem ao rei francês Henrique II, a povoação de Henriville, ao lado da foz do rio Carioca, que hoje corre debaixo da Rua Barão do Flamengo. Esse pequeno rio teve importância fundamental para a França Antártica, pois fornecia água o ano inteiro para o forte Coligny e para as centenas de habitantes de Henriville (franceses e indígenas) que trabalhavam na construção da fortaleza e nas plantações vizinhas.

Henriville foi a primeira aglomeração urbana européia na baía da Guanabara, o que dá a Villegagnon a primazia na região. Entretanto, não se lhe pode atribuir o título de fundador da cidade do Rio de Janeiro. Henriville durou apenas quatro anos, sendo arrasada por Mem de Sá, em março de 1560, por ocasião do ataque da grande esquadra portuguesa contra o forte Coligny. Henriville não teve continuidade como povoação e seu marco de fundação desapareceu. A 1º de março de 1565, Estácio de Sá fundou a cidade do Rio de Janeiro na Urca e, depois da expulsão definitiva dos franceses, em 1567, ela foi transferida para o morro do Castelo.

Até pouco tempo atrás ainda havia alguns autores com dúvidas sobre a existência de Henriville, pois não se encontraram vestígios dela. Em verdade a povoação está registrada em vários mapas da época, foi mencionada na carta de Villegagnon ao duque de Guise (hoje no Espaço Cultural da nossa Marinha no Rio de Janeiro) e no odioso panfleto do calvinista Pierre Richer, que pode ser consultado na Biblioteca Nacional de Paris. Lembro que a linha d'água na Guanabara, na praia do Flamengo, passava pelas atuais rua Senador Vergueiro, praça José de Alencar e rua do Catete. Os aterros sucessivos e as construções civis na região da praia do Flamengo sepultaram completamente quaisquer vestígios de Henriville que poderiam ser encontrados. Portanto, latu sensu, tal como Buenos Aires, o Rio de Janeiro teve dois fundadores: Villegagnon em 1556, com a sua fugaz Henriville, que não teve continuidade, e Estácio de Sá, em 1565. Os franceses estiveram na Guanabara durante mais de onze anos: de 1555 a 1567.

No início de 1557 chegaram à Guanabara doze calvinistas, enviados pelo ministro Coligny para avaliar as condições de vida no local, com vistas à possibilidade de aqui instalar uma verdadeira colônia permanente de milhares de protestantes, então perseguidos na França . Villegagnon acolheu-os bem e os calvinistas chegaram até a escrever a Calvino que ele havia abjurado a fé católica, o que era inconcebível, pois se o fizesse perderia o apoio da corte católica francesa e da Ordem de Malta. Na realidade, Villegagnon era um mestre no que os franceses de hoje chamam de langue de bois: ele foi propositadamente nebuloso em suas conversas com os calvinistas. Suas orações na Páscoa de 1557, tal como estão relatadas por Jean de Léry em seu famoso livro, são um modelo de embromação religiosa que nada provam. Ademais essas pretensas orações só foram publicadas em 1578, isto é, 21 anos mais tarde e na época não havia taquígrafos ou gravadores para registrá-las. Tudo indica que houve manipulação dos textos pelos calvinistas.

O historiador francês Frank Lestringant percebeu, nas atitudes de Villegagnon na Guanabara, discretas tentativas de conciliação e tolerância nas controvérsias com os calvinistas. Devemos recordar que entre as causas da Reforma, estavam o mau comportamento pessoal de alguns dos papas e a ganância do Vaticano em extorquir contribuições descabidas dos católicos, as quais representavam uma espécie de loteamento do céu. Villegagnon, no Rio de Janeiro, teria visualizado uma espécie de terceira via entre os dois movimentos religiosos em conflito. Imaginara ele uma igreja mais próxima da natureza, menos intransigente, menos preocupada com dinheiro. Lestringant afirma que se pode perceber com bastante clareza nos escritos de Villegagnon dos anos sessenta, depois de sua volta a Paris, essa tendência conciliadora. Notável humanista, o almirante baseava-se em Platão, Thomas Morus e Erasmo e fazia uma sutil insinuação pela reforma da administração da Igreja Católica, tão mal orientada pelo Papa, o que acabou levando aos cismas de Lutero e Calvino. Os acontecimentos na Guanabara foram uma espécie de prévia do que aconteceria na França a partir de 1562, quando explodiram as sangrentas guerras de religião, que durariam cerca de quarenta anos e só terminaram com o Edito de Nantes, em 1598.

Curiosamente, Villegagnon e Calvino foram colegas de universidade em Paris e em Orleans. Embora tenham tido divergências na mocidade, na época da implantação da França Antártica, o tom da carta que o almirante lhe escreveu da Guanabara, a 31 de março de 1557, demonstra a cordialidade de suas relações. Depois dos acontecimentos no Brasil, passaram a detestar-se e Calvino chegou até a ameaçá-lo de morte, caso aparecesse em Genebra.

Não tardou, porém, a ocorrer grave enfrentamento religioso entre o almirante e os pastores calvinistas sobre a interpretação correta da Eucaristia. No século XVI, sacava-se a espada e até se chegava a matar com o objetivo de defender, ou negar, a presença de Cristo na Eucaristia. O rompimento acabou sendo total e os calvinistas decidiram regressar à França pelo primeiro navio, uma velha nau, quase morrendo de fome e sede na viagem. Ao chegar à França, demonstraram seu ódio à Villegagnon, espalhando calúnias de todo o gênero, e com tal veemência, que o prestigio do almirante ficou abalado. Cansado de pedir reforços e dinheiro ao rei Henrique II, sem resultados, ele decidiu retornar a Paris para melhor se justificar, aproveitando seus excelentes contatos na corte.

A seguir, alguns parágrafos para comentar o livro que demonizou Villegagnon para a posteridade. Ao escrever sobre a França Antártica, o historiador deve acautelar-se para não tomar partidos, pois a tentação é considerável. Como católico e autor de um livro sobre Villegagnon, tenho a tendência de defender o partido católico contra o partido da igreja reformada e sempre trato de me controlar. O teste maior é analisar o apaixonado livro do editor francês residente na Suíça, Jean Crespin, sobre a morte na Guanabara dos três calvinistas condenados pelo Conselho da colônia. Conversei a respeito com o historiador Paulo Knauss, um de nossos melhores especialistas no século XVI. Disse-me ele o seguinte:

"É preciso considerar o caráter suíço da obra. Genebra é o cantão da Suíça que emerge da luta contra a dominação francesa na época. Crespin representa claramente uma memória de afirmação da autonomia política de Genebra, construída desde o início do século XVI, quando os genebrinos conseguiram controlar politicamente o estado local. Além disso, há que se destacar nesse ambiente a importância dos editores suíços nesse contexto. Parece-me que há aí um cruzamento da memória anti-francesa e genebrina, que se constrói em torno da identidade protestante."

Antes de tudo vamos recordar a cronologia dos eventos: o terror da guerra civil-religiosa imperou na França, sobretudo nas décadas de sessenta e setenta, culminando na trágica noite de São Bartolomeu, a 24 de agosto de 1572, com o massacre de 30.000 protestantes. Villegagnon falecera em janeiro desse mesmo ano. Em 1589, o herdeiro do trono, o calvinista Henrique de Navarra, converte-se ao catolicismo e tranqüiliza a nação. Com o nome de Henrique IV, ele seria um dos mais charmosos reis da França, o Vert Galant. Em 1597, aparece o livro de Jean Créspin sobre a morte dos protestantes na Guanabara. Em1598, o Edito de Nantes instaurava a liberdade de culto na França. Terminava a guerra civil, mas os ressentimentos persistiam. Em 1610, Henrique IV, protestante convertido ao catolicismo, era assassinado pelo monge católico Ravaillac.

No final do século XVI, convinha ao partido genebrino salientar o sacrifício dos "mártires" da Guanabara e Jean Créspin foi o seu instrumento. Na realidade, o que representava na Europa a morte, justa ou injusta, de três obscuros monges-apóstatas em uma remota baía da América do Sul, que ninguém na época sabia exatamente onde se encontrava ?

O livrinho em apreço foi escrito pelo editor Jean Créspin e publicado em Genebra, em 1597, isto é, exatamente 40 anos após os acontecimentos na Guanabara, que ele pormenorizadamente analisa em sua obra. Créspin fora também o editor da primeira edição da Viagem ao Brasil de Jean de Léry, publicado em 1578, ou seja, 21 anos depois que ocorreram os controvertidos fatos. Não se sabe exatamente quem relatou a Créspin os pormenores do julgamento e da morte dos três calvinistas. Não pode ter sido Léry quem o informou, pois seu testemunho é inaceitável, já que tais fatos aconteceram depois da partida dele e de todo o grupo calvinista no navio "Jacques", de retorno à França. O navio teve de aportar na costa brasileira porque estava fazendo muita água e tinha necessidade de ser reparado. O capitão calculou melhor suas reservas de comida e decidiu que cinco passageiros não poderiam continuar. Cinco calvinistas, da delegação chefiada pelo senhor de Du Pont, decidiram ficar no Brasil. O capitão deu-lhes um batel e dias depois, apareceram na Guanabara para grande surpresa de todos na França Antártica.

Villegagnon, que havia facilitado em tudo a partida do grupo calvinista, do qual queria se ver livre há bastante tempo, acolheu-os bem, prometeu até repatriá-los pelo primeiro navio que partisse para a França e aconselhou-os a se comportarem e não fazerem proselitismo. Eles teriam concordado, mas não tardaram a promover distúrbios e a fazer propaganda da igreja reformada. Perseguidos, tentaram fugir em direção à colônia portuguesa de São Vicente, mas Villegagnon conseguiu prender quatro deles. O quinto chegou a São Vicente, mas foi enviado à Bahia e acabou executado pelos portugueses em 1567. Os quatro calvinistas presos por Villegagnon sofreram processos de traição e deserção. Um deles, Lafont, foi absolvido pelo conselho da colônia, o que pareceria confirmar que a sentença dos demais foi justa.

Reporto-me à carta escrita da Guanabara por Villegagnon a Calvino, datada de 31 de março de 1557, na qual comunicou ao seu colega universitário em Paris e em Orleans (mas depois, seu inimigo mortal), o seguinte (ao final da missiva):

"... ali encontrei pessoas de quem não só não tenho nada a temer, mas também às quais posso fiar a minha vida. Tendo tal facilidade nas mãos, escolhi dez de toda a tropa, aos quais confiei o poder e a autoridade de comandar. De modo que, de agora em diante, nada se faça sem a opinião do Conselho, de tal forma que, se eu ordenasse alguma coisa em prejuízo de alguém, ficasse sem efeito nem valor, se não fosse autorizada e ratificada pelo Conselho. Todavia eu me reservei um ponto: é que a sentença tendo sido ordenada, me fosse permitido perdoar o malfeitor, de modo que eu possa ajudar a todos sem prejudicar ninguém. Eis os meios pelos quais deliberei manter e defender nosso estado e dignidade."

Este pormenor é importante, porque ele se reservou a última palavra nas decisões do Conselho, apenas para perdoar e não para mandar matar alguém, contrariando eventual decisão do dito Conselho. As palavras acima foram dirigidas a Calvino um ano antes do citado julgamento. O papa da igreja reformada, cujos seguidores mais tarde distorceram a decisão do Conselho, atribuíram a Villegagnon sozinho a culpa da condenação daqueles calvinistas que perturbavam a tranqüilidade da França Antártica.

Os debates no Conselho para esse julgamento parecem ter sido corretos, tanto que Lafont, um dos acusados, foi absolvido por falta de provas e libertado. Os três outros acusados foram condenados à morte por afogamento e executados imediatamente. Estávamos em fevereiro de 1558. Jean Crespin chamou-os de mártires, mas segundo o historiador naval Léonce Peillard (Villegagnon, Vice-Amiral de Bretagne et Vice-Roi du Brésil, edições Perrin, Paris, 1991), o seu texto é ridículo e o autor dá a impressão de que "aqueles carneirinhos foram esganados por um tirano sangüinário e alucinado", e o renomado historiador naval pergunta-se: "Enquanto Villegagnon puniu com a morte três homens por traição, quantos Calvino havia feito executar somente por terem opiniões diferentes da sua ?" Lembro que Calvino, em 1561, ao ler a carta enviada por Villegagnon desafiando-o para um debate público sobre o dogma reformado, enfureceu-se, pisoteou a carta e despachou o mensageiro, dizendo-lhe que se Villegagnon aparecesse em Genebra de lá não sairia vivo.

Estes seriam os fatos que realmente ocorreram na Guanabara em 1558 e foram relatados por vários outros franceses presentes à cena. O comportamento pessoal de Villegagnon aparentemente foi correto: aprovou a libertação de um calvinista contra quem não havia provas e ratificou a condenação dos três outros, que realmente eram culpados de traição, distúrbios e desobediência ao comandante-em-chefe da colônia. Em outras circunstâncias, esses fatos seriam considerados plenamente normais, já que no século XVI os chefes tinham direito de vida ou morte sobre os seus comandados. No entanto, a paixão religiosa dos reformados torceu a interpretação do julgamento dos três calvinistas e a literatura calvinista condenou Villegagnon por séculos afora. É importante sublinhar que, nos dias de hoje, não devemos julgar acontecimentos ocorridos 450 anos atrás com os parâmetros do século XXI.

Os pastores calvinistas, em publicações anônimas, apaixonadas, aparecidas na Suíça e na França, em 1561 e 1562, acusaram Villegagnon de que "ele se poluía com as índias desnudas na Guanabara", mas, surpreendentemente, Jean de Léry afirmou em seu livro que, durante a sua estada na Guanabara, ele não viu nada disso, nem teve nenhuma prova dessa acusação. Este gesto de Léry lhe faz honra, pois contradisse os pastores despeitados pelo seu fracasso na Guanabara em visível mentira, só para desmoralizar o almirante.

O grande historiador francês Frank Lestringant, um protestante moderado, em seu livro Le Huguenot et le Sauvage (Droz, Genebra, 2004) fez significativo comentário sobre a controvérsia religiosa na Guanabara:

"... Os pastores pareciam querer conciliar o inconciliável. Em matéria de controvérsia eucarística, seu racionalismo pode seduzir, mas sua obstinação decepciona ou revolta. Estamos prontos a lamentar o destino das vítimas, mas essas vítimas do fanatismo se mostram por sua vez mais fanáticas do que seus perseguidores. (...) Seus sofrimentos merecem que nos apiedemos deles, mas seu orgulho deve ser condenado. Contra o austero e impertinente Pierre Richer, representante de Calvino e ministro da Palavra, o fulminante Villegagnon terá sempre o papel simpático." (página 12).

Em suma, o texto de Jean Crespin tem interesse histórico, mas não nos devemos deixar levar pelo rancor que os protestantes tinham dos católicos naquela época conturbada, conseqüência de uma guerra civil sangüinária que durou mais de quarenta anos e que provocou extensa destruição e a morte de dezenas de milhares de pessoas inocentes em grande parte do território francês. Aliás, aquele foi um período de que os franceses até hoje se envergonham e preferem silenciar. Importante historiador francês disse-me recentemente que a segunda metade do século XVI é o período em que há menor número de livros, teses e estudos na bibliografia francesa. O texto de Crespin transpira esse ódio, compreensível até certo ponto, mas devemos dar-lhe um desconto, pois seu texto reflete todos os sacrifícios e violências que seus correligionários sofreram durante aquele período terrível. Por isso tudo, o Rei de Navarra, o futuro Rei Henrique IV, decidiu converter-se ao catolicismo porque, afinal de contas, "Paris bem vale uma missa"...

Na ausência de Villegagnon, em 1560, o governador Mem de Sá chegou à Guanabara com uma grande esquadra. Bombardeou o forte Coligny durante vários dias, arrasou Henriville e acabou por derrotar os franceses, pouco numerosos, que se refugiaram no morro da Glória. No entanto, ele só teria conseguido penetrar na fortaleza com o auxílio de um traidor francês, Jean Cointat, que depois foi preso e enviado para Lisboa, julgado e exilado para Goa, onde veio a falecer. Na França, Villegagnon já havia reunido gente e material para uma nova expedição, quando recebeu a notícia da queda do forte Coligny. Acabou desistindo e ainda recebeu a vultosa indenização de 3.000 ducados dos portugueses, que queriam vê-lo longe do Brasil.

A respeito da controvertida tomada do forte Coligny, cito o especialista Paul Knauss:

"...parece bom destacar o fato de que os franceses não sobrevalorizam a batalha de 1560, enquanto os portugueses se contrapõem a isto. Trata-se de um combate pelo fato, pois as versões estão sempre sendo reconstruídas. Talvez fosse uma possibilidade apenas sublinhar o contraste das proporções e assim o bom leitor saberá medir que o realmente acontecido ficou entre o minimalismo francês e o exagero lusitano. Mas chamo atenção para a gravura de Thevet do combate. É a imagem de uma grande batalha. Isso pode ser uma pista para admitirmos que considerando as proporções da época e do mundo colonial, certamente a batalha foi grande. E se considerarmos o envolvimento das forças indígenas, aí então teremos outra proporção. (...) Certo é que Jean Cointat auxiliou os portugueses no combate, indicando o único local de acesso à fortaleza, as condições das forças francesas e fornecendo-lhes descrições da ilha e do arsenal."

Ao regressar do Rio de Janeiro em 1559 para justificar-se das acusações que lhe fizeram os calvinistas despeitados pelo seu fracasso na Guanabara, Villegagnon conseguiu explicar satisfatoriamente o que ocorrera no Brasil. Convenceu os grandes da corte que sempre o haviam apoiado, como Maria Stuart, ora rainha da França e esposa do rei Francisco II, a depois rainha regente Catarina de Médicis, o duque de Guise, o cardeal de Lorena e o condestável de Montmorency. Redigiu vários pequenos livros rebatendo os anônimos insultos e infâmias dos calvinistas que o assediavam. Desafiou seus ex-amigos e depois inimigos mortais Calvino e Gaspard de Coligny a debates públicos sobre os dogmas da religião reformada, o que eles recusaram. A Ordem de Malta, na pessoa do grão-mestre Parisot de la Valette, seu imediato na aventura do seqüestro de Maria Stuart, elevou-o à diretoria da Ordem e concedeu-lhe a rendosa comandaria de Beauvais-en-Gatinais, perto de Nemours, onde residia em bela casa fidalga.

No final de sua vida, Villegagnon teve papel importante nas lutas religiosas francesas. Participou do cerco de Rouen (onde foi ferido), comandou a defesa de Sens e de Auxerre, derrotando as tropas protestantes muito mais numerosas do príncipe de Condé. Apesar das calúnias espalhadas pelos calvinistas, Villegagnon morreu prestigiado pela Ordem de Malta, que, em 1570, designou-o como seu Embaixador junto à corte francesa de Carlos IX. Villegagnon faleceu como um bom burguês na sua cama em Plombières, em 1572, meses antes da terrível noite de São Bartolomeu. Não chegou a saber que seu arqui-inimigo Coligny foi assassinado e jogado no rio Sena, nu e pendurado pelos pés. Tampouco chegou a ler o livro de Jean de Léry, publicado seis anos depois de sua morte. Se ainda estivesse vivo, certamente o contestaria veementemente, como era seu feitio.

A vida e os feitos de Villegagnon depois de seu regresso do Brasil refutam amplamente as pretensas maldades que ele teria cometido no Brasil, segundo os cronistas calvinistas, e em nada afetaram seu prestígio junto às mais altas autoridades católicas da França. Provavelmente alguns desses fatos, se realmente ocorreram, não tiveram maior gravidade. Na realidade, no Brasil ele foi demasiado rigoroso com a sua turbulenta tripulação, em parte retirada das prisões do norte da França. Como cavaleiro de Malta, estava habituado à rígida disciplina da Ordem e aqui agiu com mão forte. Errou, porém, ao não trazer para o Brasil muitas mulheres em sua expedição, para aqui se casarem com os jovens colonos franceses, que se atiraram às belas índias desnudas. Esse esquecimento lhe causaria sérios problemas de disciplina, que reprimiu severamente.

Os cronistas calvinistas foram implacáveis com a sua memória e repetiram incansavelmente as acusações contra Villegagnon por séculos a fio. Depois da publicação do belo livro de Leonce Peillard, em 1991, quase tudo parece esclarecido. Por isso, a Marinha de Guerra brasileira prestou recentemente ao grande marinheiro francês significativa homenagem em sua cidade natal, Provins. Por feliz iniciativa do almirante Max Justo Guedes, então diretor do Serviço do Patrimônio da Marinha, o navio-escola brasileiro levou até Rouen um pequeno obelisco construído com pedras retiradas da ilha de Villegagnon, na Guanabara, e lá foi erguido, a 1º de agosto de 2000, em comovente cerimônia a que compareceram o prefeito da cidade, o Embaixador do Brasil e autoridades da Marinha da França. O comandante Lucien Provençal, meu parceiro no livro sobre a França Antártica e hoje sócio correspondente do IHGB, foi um dos oradores nessa cerimônia em Provins.

Os festejos do centenário do descobrimento do Brasil ensejaram várias iniciativas em torno da França Antártica. Em 2000, o autor destas linhas e Lucien Provençal publicaram o livro Villegagnon e a França Antártica – uma reavaliação, que teve boa acolhida da grande imprensa brasileira, e uma edição francesa foi publicada em Paris em 2002. Em dezembro do mesmo ano, o Espaço Cultural da Marinha no Rio de Janeiro apresentou importante exposição intitulada "Villegagnon e a França Antártica", no quadro das comemorações dos 500 anos do Descobrimento. Afinal, se fazia justiça no Brasil ao ilustre cavaleiro de Malta.

Curiosamente, o tema da França Antártica atraiu até a atenção mundial. Em 2001, o escritor francês Jean Christophe Rufin recebeu o Prêmio Goncourt em Paris por seu romance Rouge Brésil, que se passa na França Antártica. O livro alcançou imenso sucesso e já vendeu mais de meio milhão de exemplares no mundo inteiro. A fértil imaginação do romancista criou vários episódios que não têm fundamento. Como bom francês, o escritor preferiu dar ao traidor Jean Bolès, a nacionalidade italiana. A descrição da tomada do forte Coligny beira o inverossímil, com Mem de Sá matando o traidor ajoelhado perante o padre José de Anchieta, que parece abençoar o ato! Seu tratamento do personagem Villegagnon também deixou um pouco a desejar, embora não tenha chegado a reproduzir as caluniosas acusações dos calvinistas. Em 2003, outro escritor francês, Serge Elmalan, publicou em Lausanne, Suíça, o livro Villegagnon ou l'Utopie Tropicale, outro romance baseado na França Antártica, que não teve a mesma publicidade, mas que certamente está muito mais perto da verdade histórica da aventura francesa na Guanabara do que a obra de Rufin. Ambos os livros já estão publicados em português no Brasil.

Nosso conhecido romancista Antônio Torres é autor de um saboroso pequeno livro intitulado Meu Querido Canibal, que também transcorre na França Antártica e focaliza o pitoresco chefe indígena Cunhambebe, amigo de Villegagnon. Finalmente, lembro a publicação da 2ª edição da biografia romanceada de Villegagnon de autoria do escritor Chermont de Brito, intitulada Villegagnon, o Rei do Brasil, com apresentação e notas elaboradas por mim, à luz dos novos documentos descobertos recentemente.

Em 2003, o Serviço Histórico da Marinha Francesa organizou em Toulon importante base naval do sul da França, uma bela mostra sobre a França Antártica, organizada pelo Comandante Lucien Provençal, acima mencionado. Para o ano corrente, com o objetivo de comemorar os 450 anos da chegada de Villegagnon à Guanabara a 10 de novembro de 1555, o Museu Histórico Nacional decidiu em boa hora organizar o presente seminário sobre "O Universo da França Antártica". Finalmente, a Fundação Darcy Ribeiro vai publicar em 2006 importante volume com 22 cartas de Villegagnon, mais as duas cartas de seu secretário Nicolas Barré, inéditas no Brasil, e ainda o faccioso livrinho de Jean Crespin, com apresentação e comentários meus. Last but not the least, uma segunda edição revista do meu livro sobre a França Antártica, em parceria com o comandante Lucien Provençal, acaba de ser lançada pela Nova Fronteira.

Acrescento em seguida algumas informações preciosas para quem quer estudar a França Antártica mais profundamente. Os registros da montagem da expedição são muito esparsos. Sua repercussão no século XVI europeu povoou a literatura da época, marcando, por exemplo, a obra do famoso poeta clássico francês Ronsard, bem como o humanismo de Montaigne, no seu famoso livro de Ensáios. Algumas dessas edições podem ser encontradas em exemplares raros na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Agora a nova publicação da Fundação Darcy Ribeiro sobre a França Antártica reproduz as cartas publicadas por Paul Gaffarel, e outras mais que consegui descobrir em outras edições. Outros documentos de interesse podem ser encontrados nas excelentes obras de Arthur Heulhard, em 1897, e de Leonce Peillard, publicada em Paris em 1991, que foram de tanta valia para a elaboração do meu citado livro. Saliento finalmente a 3ª edição do excelente livro de Frank Lestringant intitulado Le Huguenot et le Sauvage, (Genebra, 2004), de notável erudição.

Contudo, a França Antártica do século XVI possui uma característica que marca seu universo de fontes. Os personagens envolvidos em seu desenrolar foram homens de saber. Além disso, as querelas religiosas impuseram uma disputa de argumentos, o que se combinou com a tarefa assumida pelos huguenotes de detratar publicamente Villegagnon. Isto os levou a produzir textos agressivos, forçando Villegagnon a publicar libelos contrários em resposta. Os famosos livros de André Thevet, Singularidades da França Antártica, e de Jean de Léry, História de uma viagem feita ao Brasil, tiveram várias edições na Europa e no Brasil. O livro menos conhecido é o de Marc Lescarbot, dedicado principalmente ao projeto colonizador francês na Flórida nos anos de 1570, também fracassado, mas que contém um capítulo interessante sobre o episódio da França Antártica do qual o autor também foi personagem.

Encontra-se na Divisão de Obras Raras da nossa Biblioteca Nacional a conhecida obra fundadora da memória protestante francesa na Europa – a raríssima História dos Mártires, de Jean Crespin, acima comentada. A Fundação Darcy Ribeiro vai republicar essa obra, em seu livro sobre a França Antártica, com comentários meus. Em contraposição, encontramos também no acervo da mesma divisão da FBN uma das defesas públicas de Villegagnon, respondendo em forma impressa às acusações que sofrera por parte dos seus anônimos detratores.

De resto, no rol dos autores franceses, é preciso citar ainda um pequeno opúsculo de Jean Cointat, personagem que se aliou aos portugueses, e que terminou enredado nas teias da Inquisição lusitana na América, cujo processo foi publicado pelos Anais da Biblioteca Nacional, e seu original está depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa.

No conjunto, destacam-se especialmente as notas de Manuel da Nóbrega e de José de Anchieta, que não se restringem apenas à correspondência, mas incluem outros textos ricos em elementos que dão sentido às representações religiosas da ação francesa na América portuguesa. Esse ponto de vista religioso pode ser enriquecido ainda pela consulta ao Primeiro Livro de Reconciliações e Confissões da Primeira Visitação do Santo Ofício da Inquisição das partes do Brasil, datado de 1591 e cuja transcrição faz parte do acervo da Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Essa peça histórica acerca da vida no mundo colonial quinhentista reúne informações sobre três franceses arrolados pela Inquisição e estabelecidos na América portuguesa. A confissão de Pero de Vila Nova é a mais importante relacionada diretamente com a França Antártica, personagem que repete a trajetória de João Cointat.

Nos Anais da Biblioteca Nacional do ano de 1906 encontra-se, ainda, o mais importante registro oficial da parte portuguesa sobre a França Antártica, que são os documentos do governador-geral do Brasil da época, Mem de Sá, comandante militar português de 1560. São curiosas as opiniões do governador em relação aos franceses e a Villegagnon, que ele elogia como excelente organizador, louvando até os indígenas treinados pelos franceses como "bons espingardeiros". Aliás, Mem de Sá foi repreendido pela rainha regente de Portugal por não haver perseguido os franceses depois da vitória, os quais se refugiaram no morro da Glória e na ilha do Governador e lá ficaram até 1567.

Como salientou Knauss, é preciso apontar que as crônicas dos componentes da França Antártica são conhecidas através de suas estampas que nos dão a imagem que o europeu tinha do Novo Mundo. Estas gravuras constituem por si só um corpus documental interessante e que permite abordar a história da imagem e da edição. As ilustrações do livro de André Thevet permitem acompanhar as bases do povoamento francês, como o trabalho de corte do pau-brasil.e a localização de Henriville no mapa da Guanabara. Embora nesse caso, sua imagem forneça um dos poucos registros do estabelecimento francês, ainda assim a inventividade das suas imagens serve para fornecer um retrato do Novo Mundo.
Vasco Mariz

Jornalista, editor, escritor e Secretário Geral da Association Dialogue France-Brésil. Em 2000, publicou "Villegagnon ou a utopia tropical" com prefácio de Jean-Christophe Ruffin, uma obra que retrata a efêmera epopéia da França Antártica. E-mail: vasco.mariz@globo.com


Por sua vez, nem sempre o próprio autor pode ser responsabilizado pelo caráter inventivo das imagens da vida no continente americano. As estampas ilustrativas nem sempre foram fiéis aos autores das crônicas, sendo criação dos editores ou dos gravadores que recebiam encomendas. Assim é que na crônica de Jean de Léry, a montanha do Pão de Açúcar aparece como se estivesse numa ilha, indicando um claro desconhecimento da terra por parte do desenhista, mas certamente não do personagem testemunho. Esse exemplo ilustra como a obra impressa na Época Moderna, nos primórdios da história da imprensa, muitas vezes autonomizava o livro em relação ao seu autor.

Vemos assim que os 450 anos da França Antártica foram devidamente homenageados e devemos rejubilarmo-nos pelos merecidos festejos da efeméride, centralizados no seminário do Museu Histórico Nacional.

Revista História - UNESP

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