quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A arte de sangrar na Lisboa do Antigo Regime


A arte de sangrar na Lisboa do Antigo Regime

Georgina Silva dos Santos
Professora Adjunta do Departamento de História da UFF. E-mail: georginasantos@uol.com.br


RESUMO
A sangria teve papel preponderante no repertório das práticas curativas utilizadas em Portugal, na Época Moderna. Este artigo analisa as matrizes do pensamento médico que autorizaram sua adoção em larga escala e demonstra, a partir do estudo circunstanciado da cidade de Lisboa, entre os séculos XVI e XVIII, a técnica e o perfil profissional dos barbeiros sangradores, responsáveis pela execução da flebotomia.

Palavras-chave: Barbeiros Sangradores – Lisboa – Época Moderna


"Sangrai e purgai-o e se morrer enterrai-o". O adágio popular que se ouvia na voz dos portugueses do Antigo Regime expressa com realismo o tratamento médico dispensado a muitos homens e mulheres em Lisboa, entre os séculos XVI e XVIII. À primeira vista, pode-se supor que estavam todos expostos ao pior dos cuidados terapêuticos. Esta impressão seria exata, caso a sangria não fosse considerada pelo saber douto e universitário da época como um procedimento altamente eficaz.

A medicina ensinada em Portugal, nos Tempos Modernos, baseava-se nos princípios da escola hipocrática e nos ensinamentos galênicos, divulgados na Península Ibérica quando passou no domínio do Islã no século VIII2. Ao lado dos inúmeros contributos legados pela medicina árabe, que aliou um imenso conhecimento teórico a uma observação aguda dos casos clínicos, aperfeiçoando os estudos de uroscopia e preconizando a aplicação do cautério e do ferro em brasa no tratamento de feridas crônicas3, os fundamentos greco-romanos constituíram o alicerce de toda a doutrina médica e da prática clínica em terras lusitanas.

Desde a formação do Estudo Geral, em 1290, na cidade de Lisboa, até o fim do setecentos, gerações de médicos emitiram diagnósticos e receitaram mezinhas, considerando que cada ser vivo ou bruto era resultado da composição de quantidades variáveis de terra, água, fogo e ar. Guiados pelos pressupostos da medicina antiga, entendiam que a combinação destes quatro elementos no organismo humano dava origem a quatro humores distintos: o sangue e a bílis amarela, produzidos pelo fígado, a fleuma, produzida pelo cérebro e a atrabílis (bílis negra), produzida pelo baço4. Como suas qualidades originais – o quente, o frio, o seco e o úmido – estavam sujeitos a forças internas ou externas capazes de alterá-los, os pneumas, asseguravam que a origem de todas as doenças residia no acúmulo destes líquidos orgânicos em uma região do corpo. Mas, os médicos portugueses defendiam, tal e qual os antigos, que o organismo era portador de uma força curativa que lhe era inerente e, por isto, o próprio corpo procurava libertar-se espontaneamente dos efeitos nocivos de qualquer descompasso humoral através de secreções. Deste modo, a fleuma, fria, úmida e transparente, era expelida pelo nariz, nos resfriados; a bílis, amarela, quente e seca, era expulsa pelo vômito, nas alterações digestivas; a atrabílis, escura, fria e seca, era excretada junto com as fezes, nas afecções intestinais, enquanto o sangue, vermelho, quente e úmido, se desprendia das feridas e acompanhava a expectoração das doenças pulmonares5.

Em outras palavras, para os médicos portugueses, a saúde era conseqüência de uma combinação humoral harmônica e a doença era o sinal de um desajuste, de uma ruptura neste equilíbrio natural. Orientados pelo sistema hipocrático e pelos escritos de Avicena, estabeleciam uma relação de causa e efeito entre a enfermidade e seus sintomas, diagnosticavam e tipificavam as doenças de acordo com os sinais externos que produziam. Instruídos por estes princípios, não vacilavam em afirmar que as mazelas de um ser humano tanto poderiam advir do excesso de exercício, da inércia, constante, das dietas impróprias, ou da impureza do ar, isto é, a repetição contínua dos mesmos hábitos, um ambiente infecto, uma alimentação inadequada, contrária ao clima das estações do ano, poderiam debilitar o corpo. O tratamento que dispensavam a qualquer achaque visava neutralizar a ação dos humores corruptos, provocados por estas condições. Então, combatiam o mal-estar alheio receitando regimes alimentares e medicamentos compostos de elementos com qualidades opostas às substâncias nocivas que dominavam o organismo e/ou através da sangria.

Os primeiros tratados hipocráticos reconheceram na flebotomia uma das principais armas na luta contra os humores doentios. Recomendavam-na no caso de luxações musculares ou na ocorrência de problemas na coluna vertebral. Mas esta técnica de tratamento alargou realmente seu leque de prescrições no início da era cristã, quando Celsus (c. 35 a.C.) descreveu os sinais indicadores da inflamação: rubor et tumor cum calor et dolor6. Encarada de início apenas como uma defesa do corpo, como uma reação orgânica, a acumulação de humores passou a ser compreendida em si mesma como uma doença. Logo, uma vez identificada pela aparência deixada na área atingida, realizava-se a sangria com o intento de dar vazão aos humores perniciosos que circundavam a área afetada.

Indicada no caso de contusões, dores reumáticas e inflamações, a sangria assumiu progressivamente a linha de frente das técnicas de tratamento médico, tornando-se inseparável do repertório das práticas curativas. A obra de Galeno contribuiu decisivamente para esta orientação. Na acepção do médico, o sangue não fazia um movimento circular e sim centrífugo, convergindo para os tecidos sem retornar ao ponto de origem. Por negar a circulação do sangue, sua tese justificou definitivamente o emprego da flebotomia. Ao secionar uma veia, acreditava-se que o desvio do fluxo sangüíneo, do seu local de destino para a zona do corte, permitia que todos os humores danosos que entravam em contato com o sangue em sua jornada pelo corpo fossem recolhidos.

Derivada dos incipientes conhecimentos do saber médico antigo, a arte de sangrar popularizou-se no medievo e adentrou incólume os Tempos Modernos. A aversão ao experimento, o apego aos tabus do corpo, traduzidos na censura imposta à dissecação de cadáveres pela Igreja Medieval, inibiram qualquer reavaliação do sistema hipocrático-galênico, transformando-o numa tradição. Nem mesmo a suspensão das sanções pontifícias aos estudos anatômicos, motivada pela pandemia que ceifou milhares de almas, às portas da Época Moderna, foram suficientes para destroná-lo.

O saber médico conheceu, porém, progressos incontestáveis, insuflado pelo Humanismo e ancorado em uma política régia que trouxe para si o patrocínio de obras hospitalares. Em 1543, a obra do belga Andrea Vesalius (1514-1564), De Humanis Corpori Fabrica, desmentiu inúmeras descrições anatômicas de Galeno. Em 1628, o inglês William Harvey (1587-1657) comprovou a circulação sangüínea, fornecendo as bases para que a sangria fosse questionada7. Paradoxalmente, médicos e cirurgiões portugueses afamados continuavam a considerar a flebotomia como uma técnica de cura eficiente e indispensável.

A formação e a nomeação de um oficialato subordinado ao Estado português para atender à população enferma e carcerária, no início do século XVI, já havia institucionalizado o uso da sangria. Os conhecimentos produzidos por uma medicina de ponta depararam-se com os cânones já consagrados, dificultando sua assimilação. Os tratados médicos resultantes de uma observação sistematizada estavam em margem oposta aos poderes constituídos pelas cátedras universitárias, conquistadas graças a um conhecimento ancorado na tradição. A resistência em adotar teorias oriundas de estudos experimentais persistiu inclusive após a Reforma da Universidade, empreendida pelo Marquês de Pombal, em 17728.

A prática clínica em Lisboa desenvolveu-se rigorosamente dentro deste quadro. Prescrita por médicos e executada por barbeiros, a sangria impôs-se e manteve-se como a soberana das técnicas de tratamento, nas tendas, nos domicílios, nos cárceres e nos hospitais lisboetas durante todo o período moderno.



1. A clínica médica no Hospital Real de Lisboa

Em 1492, quando D. João II lançou em cerimônia pública a primeira pedra para a construção do Hospital de Todos os Santos, sua intenção era dotar Lisboa de uma casa hospitalar que pudesse assistir à população que vivia na cidade e em seu termo. Erguido no Rossio, sobre o chão do antigo cemitério dos mouros e às custas da desapropriação de construções que serviam de morada e de oficinas artesanais, o primeiro Hospital Real português foi concluído em 1504, no reinado de D. Manoel. A obra desativou as modestas instalações que serviam de enfermaria para os oficiais mecânicos no fundo das lojas e foi um passo decisivo para a transformação do conceito das unidades hospitalares em Portugal.

Entregue à proteção de Todos os Santos, porque reuniu os antigos hospitais, identificados por patronos celestes, a instituição pretendia ser uma casa de saúde. Embora oferecesse os serviços de um capelão para conforto espiritual e psicológico de seus pacientes, seu desiderato não se restringia a abrigar doentes para que tivessem uma boa morte e os últimos cuidados religiosos. Definidos por Regimento em 1504, o perfil e a atuação do quadro funcional e o próprio dia-a-dia hospitalar revelavam que o propósito maior do estabelecimento era a recuperação do interno9.

O rigor com a limpeza do hospital, a manutenção de condições necessárias para prover a alimentação adequada a cada paciente, o controle do excesso de ruídos, a postura a ser assumida pelos funcionários diante da doença e da morte, assim como a disposição calculada dos leitos nas instalações, davam a tônica do discurso médico-administrativo do Hospital Real.

A equipe médica era formada por dois físicos, dois cirurgiões, um barbeiro e sangrador, um boticário, uma cristaleira, além dos enfermeiros e de uma ajudante da enfermaria feminina. Com exceção de um dos físicos, um dos cirurgiões e do barbeiro, todos os outros oficiais moravam nos alojamentos do Hospital, para acudir de imediato os internos. Os físicos e os cirurgiões realizavam, diariamente, cada qual por sua vez, duas visitas aos doentes. A primeira tinha lugar logo ao raiar do sol, a segunda ocorria até as duas horas da tarde. Nestas diligências, os quatro eram acompanhados pelo boticário, pelo barbeiro e pelo vedor. Após os procedimentos de costume, ou seja, a verificação do pulso e o "exame das agoas" (urina), o enfermeiro-mor registrava no prontuário do paciente – uma tábua de madeira presa à cama com os dados de identificação do interno – as mezinhas a serem preparadas pelo boticário, a dieta prescrita pelo médico, que o vedor encaminharia à cozinha, e as sangrias a serem executadas pelo barbeiro.

A estipulação de uma rotina hospitalar, com horários de atendimento determinados pelo regulamento, e a manutenção de um quadro funcional fixo, com funções interligadas, disponível a qualquer hora, por residir na instituição, articulada à remoção discreta e imediata do paciente após o óbito, por ser a prova maior do fracasso do tratamento, fizeram do Hospital de Todos os Santos um ícone das tecnologias disciplinares implementadas pela Coroa portuguesa no século XVI. Sobretudo, se comparado à experiência da França, segundo Michel Foucault, onde a organização hospitalar só prevê um cuidado especial com o regime alimentar dos internos, a identificação dos doentes, o plantão de seu corpo médico e a adaptação das instalações aos serviços da instituição, no século XVIII10.

A compreensão do hospital como um lugar de cura e promotor da construção do saber médico talvez tenha sido tardia entre os franceses e só se completou em Portugal, realmente, no oitocentos, quando a direção dos hospitais foi entregue a um licenciado em Medicina. Mas as bases institucionais da clínica médica já estavam presentes no projeto do Hospital de Todos os Santos, porque seu Regimento considerava o espaço hospitalar um ambiente privilegiado para o aprendizado. Nas duas sessões diárias em que visitava os pacientes, o cirurgião que vivia na Casa trazia consigo dois moços e lia para seus ajudantes uma lição de cirurgia para "aprenderem theoria e pratica e poder[em] ficar ensinados [...] para as curas e chagas dos doentes"11.

Esta face do projeto hospitalar manuelino só se completou de fato em 1556, no reinado de D. João III, quando o monarca definiu em pormenores os termos deste ensino, no alvará em que nomeou o Dr. Duarte Lopes como cirurgião residente do Hospital Real.

Eu, o rei, faço saber a vós provedor [...] que, confiando eu da bondade letras e saber do doutor Duarte Lopes, morador na dita cidade, e por folgar de lhe fazer mercê, hei por bem de encarregá-lo daqui em diante [de] ler uma lição de Guido cada dia nesse hospital, em uma casa que lhe vos ordenares para isso. E lerá uma hora pouco mais ou menos e depois de ler a dita lição estará meia hora [à disposição] para dúvidas que os ouvintes lhe puserem. E assim me apraz que ele faça as anatomias que parecerem necessárias e vos ordenardes dos corpos mortos dos que na dita casa falecerem e assim as que se houverem de fazer aos corpos dos que padecerem por justiça nesta cidade (...)12.

Restrita a uma sentença, nos dias da redação do Regimento, a instrução que o cirurgião deveria dar aos seus aprendizes tornava-se, nos tempos de João III, uma obrigação inelutável, com horário para o início e término das aulas e tempo previsto para o esclarecimento das eventuais dúvidas. As lições seriam, agora, ministradas em um local designado pelo provedor do Hospital e contemplavam o estudo da Anatomia. Para que o dito tivesse efeito, os corpos dos indigentes que faleciam dentro do Hospital, ou dos que padeciam nas mãos da justiça régia, passavam a ter outra utilidade.

Decalcada dos escritos de Avicena e Galeno, as lições de Guido, nome aportuguesado do francês Guy de Chauliac, orientavam o diagnóstico e os tratamentos recomendados em caso de extrações dentárias, feridas, ulcerações, apostemas (escrófulas, cancros, erisipelas) e outras mazelas cutâneas e subcutâneas que atingiam os internos do Hospital. O antidotário, por conseguinte, também era fiel à tradição antiga: cautérios, purgantes, clisteres e sangrias. A remoção de dentes e a seção de uma ferida crônica com ferro em brasa eram assunto para o cirurgião, mas, em se tratando das incisões venosas, a tarefa era confiada a outro oficial da instituição: o barbeiro.

A lida do barbeiro e sangrador do Hospital Real ia além de sangrar os internos em "todas as horas e tempos" em que fosse requerido e ordenado pelo físico. Cabia-lhe, ainda, "fazer a barba e tosquiar" os doentes todas as vezes em que fosse solicitado, livrando os internos do incômodo dos piolhos e preparando-os para receber, na face ou na cabeça, os emplastros do cirurgião, as mezinhas do boticário e suas próprias ventosas13.

A arte da barbearia e da sangria em Lisboa não estavam entre as técnicas ensinadas no Hospital Real nos dias de D. João III, nem tampouco antes, nos anos de D. Manuel14. O aprendizado nada tinha de livresco ou teórico, era oral, empírico e obtido nas tendas dos mestres barbeiros. Ao contrário da prática cirúrgica, o ofício de sangrar estava submetido às regras da confraria de São Jorge e aos regulamentos que norteavam o exercício legal desta profissão na cidade.



2. Lancetas, sanguessugas e ventosas: a cura para todos os males

A partir de 1572, por ordem da Câmara Municipal, o barbeiro que cuidasse de sangrar deveria primeiro comprovar dois anos de experiência, supervisionados pelo mestre, para que pudesse receber do cirurgião-mor a carta de examinação, que o habilitava a exercer o ofício por conta própria15. Os que descumprissem a lei pagavam multa à cidade. A medida visava inibir a atuação dos oficiais sem licença e que sangrassem sem orientação prévia de um médico ou cirurgião. A rigor, cabia a estes profissionais a prescrição terapêutica e, ao barbeiro, apenas executá-la. Mas é difícil crer que a prática fosse esta, longe das instalações hospitalares. Nem todos os casos requeriam internação e nem todos podiam arcar com os custos do atendimento médico e mesmo com as receitas passadas ao boticário. Preconizada pela cultura médica da época e corrente no vulgo como um tratamento eficaz, a sangria, pelo contrário, não discriminava as gentes.

Munidos de uma lanceta, bacias, pós restritivos para estancar o corte e ventosas de tamanhos variados para sangrias no pescoço e abdome, os barbeiros socorriam qualquer um. A facilidade de encontrá-los nas lojas da cidade e o preço acessível do serviço contribuíam para que estabelecessem uma clientela cativa16. Tais comodidades faziam muitos recorrerem a um barbeiro por iniciativa própria. Não obstante, alguns médicos, viciados pelo hábito ou por incúria, receitavam o mesmo procedimento.

João Curvo Semedo, médico da Câmara de sua Majestade, dos Cárceres do Santo Ofício e autor de vários tratados de medicina, deixou registrada em uma de suas obras uma crítica ao uso indiscriminado da flebotomia17. Em 10 de dezembro de 1668, foi chamado à casa de D. Cecília Maria de Menezes para curá-la de uma "febre podre" e um "calor hectico", que a deixaram pálida, muito magra, "tossitosa", com suores noturnos e pele áspera. Até aquela data, a moça já havia sido sangrada cento e vinte vezes. Suspeitando do tratamento aplicado à paciente, João Curvo foi taxativo:

Não me atrevo a afirmar que tão excessiva efusão de sangue fosse a causa de se fazer de tão robusta, tão fraca e de tão sadia, tão enferma. Mas Galeno, que tem maior autoridade que eu, o insinua dizendo: ainda que alguns doentes não sintam logo os danos que as muitas sangrias lhe fazem, depois que as forças se enfraquecem com ela, caem os doentes em enfermidades teimosas e ficam toda a vida enfermos, descorados, com febres, balofos, fracos de vista, de estômago, de fígado, de nervos e por esta causa uns se fazem hidrópicos, outros apopléticos, outros paralíticos e com qualquer leve enfermidade morrem ou chegam a grandíssimos perigos, o que não sucederia, se os houvessem sangrado com mais cautela e moderação18.

Pioneiro no uso e na vulgarização dos remédios de formulação química em Portugal, João Curvo conseguiu livrar Dona Cecília da moléstia, conjugando uma receita à base de elementos metálicos com infusões e dietas de inspiração galênica. E não poderia deixar de sê-lo. Como um médico típico da medicina barroca, acatava as novidades, mas mantinha intocadas certas tradições. Sua voz não se opunha à sangria, somente criticava a utilização abusiva das lancetas, das ventosas e das sanguessugas.

Havia, entretanto, quem a recomendasse como precondição para aplicação de qualquer tratamento. Manoel Leitão, cirurgião do Hospital Real de Lisboa, incluía-se neste rol. No prólogo da obra Prática dos Barbeiros, impressa pela primeira vez em 1604, reeditada em 1667, e que se tornaria uma verdadeira bíblia para os homens do ofício, deixou dito:

(...) entre os remédios mais proveitosos, de que a assim na Medicina como na cirurgia, costumam os Médicos mais usar, é a sangria, porque conforme a doutrina de todos, antes que o remédio bocal se [aplique], primeiro procede[-se] a evacuação da sangria, pressuposto [o uso do] clister, e assim a sangria he o melhor remedio & o primeiro que às enfermidades se pode aplicar"19.

Enfático e objetivo, o discurso de Manoel Leitão esclarece, naturalmente, sobre os procedimentos terapêuticos empregados no Hospital de Todos os Santos e revela o grau de importância que os médicos do século XVII atribuíam à sangria. O procedimento era usado para expelir os humores danosos que atuavam sobre um ponto específico do corpo (evacuação), para enganar o fluxo sangüíneo e conduzi-lo para o lado oposto, evitando derrames na parte afetada (diversão). Era também utilizado para levar o humor a uma parte específica (atração), provocando o mênstruo, por exemplo, e para modificar a qualidade do humor maligno predominante (alteração). Era empregado ainda para conservar os humores sãos, prevenindo uma enfermidade (preservação), e para amenizar dores ou baixar a temperatura do corpo, no caso de febres (aliviação).

Utilíssima para prevenir e remediar, segundo Manoel Leitão, a flebotomia era empregada como anestésico, antiinflamatório e até como abortivo. Com um amplo leque de recomendações, que incluíam desde simples cefaléias a tumores e hemorragias, sua execução dependia, entretanto, de imensa precisão.

A intenção de Manoel Leitão em escrever os quatro tratados que compõem sua obra não foi a de ensinar seus pares e sim a de instruir os sangradores que atuavam na cidade, depois de constatar que, após três, quatro anos de iniciados na arte de sangrar, a maioria desconhecia os nomes e a distribuição das veias, além de ignorar quais delas eram passíveis de incisão e quais as complicações advindas de um corte impróprio.

Compreender o intrincado mapa do sistema venoso era mesmo tarefa difícil. Segundo o cirurgião, podia-se sangrar quarenta e duas veias: dezoito na cabeça, doze nos braços e doze nos pés (fl. 29). De acordo com suas recomendações, sangrava-se atrás das orelhas (veias parótidas) para combater catarros antigos e as chagas de cabeça (fl. 42); na testa (veias temporais) para curar oftalmias (fl. 45); no canto dos olhos (veias "aspicientes") para sanar enfermidades na face e vermelhidão na vista, debaixo da língua (veias "leonicas") para livrar o doente das dores de garganta (fl. 50). E ainda dentro e fora do nariz e nos lábios. Apenas o "sovaco" (fl. 30) deveria ser poupado de incisões.

Austero, Manoel Leitão não economizava exigências, ao traçar o perfil de um bom barbeiro. Tinha de ser "mancebo", para que não lhe tremessem as mãos e tivesse boa vista. Deveria ser "experimentado", tanto na prática quanto na teoria, para que soubesse diferir uma veia de uma artéria, conhecendo quantas veias existiam no corpo humano e quais eram sangráveis. E, evidentemente, bem "aparelhado de lancetas". Desde que reunisse todos estes atributos, juventude, experiência e algum cabedal, poderia seguramente exercer o mester (fl.19).

A debilidade física afastou alguns sangradores do ofício, inclusive precocemente. Mas o maior desafio de qualquer aspirante a barbeiro, o domínio da rede venosa, pouco significava sem que se observasse "o modo e a maneira de sangrar" (fl. 19).

Os procedimentos preliminares à picada, se acertados, eram a base para o sucesso da incisão. Por isto, primeiro o barbeiro amarrava uma atadura bem feita acima do sangradouro, para que a veia, uma vez comprimida, se levantasse e ele pudesse ter melhor tato e visão. Então, friccionava-a com os dedos, dava-lhe um pique rápido, nunca muito profundo, para que não atingisse um nervo, uma artéria ou um tendão e a picada fosse precisa e indolor. Depois de retirada a quantidade de sangue recomendada, o barbeiro estancava a ferida com um chumaço de pano, envolvia o corte com uma atadura, amarrando-a por cima do braço ou do pé, conforme o caso, de modo que o curativo não desatasse logo. A operação, entretanto, exigia delicadeza. A fita nunca haveria de ser muito justa, sob o risco da pressão levantar a artéria, a pulsação ser perdida e o barbeiro picar a artéria em vez da veia, conduzindo a um fluxo de sangue impossível de estancar e capaz de levar o paciente à morte.

A demonstração da habilidade do barbeiro media-se, portanto, por sua atenção na seqüência destes procedimentos. Os barbeiros desenvolveram, entretanto, meios e modos para exibir sua competência, em alguns casos pondo em risco o êxito da sangria. Avesso à prática dos oficiais mecânicos, o cirurgião explicava aos aprendizes que seu objetivo maior era realizar uma incisão bem feita, um pique seguro. Sangrar "de pancada, & com ligeireza", para "florear com a lanceta" (fl.22) e/ou usar o dorso da mão, porque assim diziam que era mais "fermoso" (fl.20), em vez de pressionar a veia com a palma da mão virada para baixo, era um passo para o fracasso da flebotomia e poderia causar desastres irremediáveis.

Os cuidados antes, durante e após a sangria naturalmente consideravam, outrossim, o paciente e o próprio instrumento de trabalho. Sendo "delgada e delicada", a lanceta era própria para tecidos macios. Sangrar sobre calos tanto era incorreto como poderia resultar na perda do material de trabalho. Observada a ressalva, a sangria deveria ser realizada sempre com o paciente deitado, nunca de pé. Todos os adornos, fossem jóias de pedra, de metal ou cilícios, deveriam ser retirados, pois, de acordo com a "doutrina de Guido de Cauliaco" [sic], retinham o sangue. Depois de sangrado, era mister que o paciente guardasse total repouso. Contudo, não poderia dormir antes de uma hora transcorrida, nem lhe era recomendado deitar sobre a ferida ou ingerir alimentos indigestos. Cabia-lhe fazer uma dieta "sutil e delgada", de acordo com a prescrição médica.

A escolha do instrumento a ser usado pelo sangrador obedecia, necessariamente, aos objetivos da incisão. Por princípio, a lanceta, a sanguessuga, assim como a ventosa – um vaso de vidro ou osso com um tubo estreito e de fundo largo – prestavam-se à evacuação dos humores. Todavia, como atingiam a carne em níveis diferentes, as duas primeiras eram indicadas para uma remoção mais profunda, e a segunda, para os humores que estavam entre "o couro e a carne" (fl. 72).

As sanguessugas eram recomendáveis nos casos em que o doente já estava muito debilitado e não suportava mais os cortes (fl. 68). Para que os vermes cumprissem o papel de sugar o sangue, o certo era deixá-los de molho em água limpa desde a véspera para que deitassem fora qualquer excrescência e ficassem com "o ventre vazio" (fl. 70). Na hora da aplicação, friccionava-se a pele até provocar vermelhidão, ou untava-se a região com sangue de galinha ou de qualquer outro animal, para que os bichos cedessem ao seu apetite natural.

Se as sanguessugas eram indicadas apenas para sangrar "os beiços, nariz, gengivas" e as veias do ânus (fl. 69), as ventosas tinham um leque variado de prescrições. Como a sangria, neste caso, era feita por vácuo, aquecia-se a parte bojuda do vidro com o auxílio de uma estopa e, depois, depositava-se o orifício da parte oposta sobre a pele (fl. 70). Aplicando a ventosa sobre o ventre curavam-se colites, colocando-a sobre as costas, tratavam-se dores ciáticas e incorreções na coluna vertebral; dispondo-as nas coxas, debaixo (ou sobre) os seios da mulher, provocava-se o mênstruo. O método servia ainda para sanar doenças pulmonares em estágio avançado, mau hálito, chagas abertas, esquinências, mordidas de animas venenosos (fl. 64), enfim, praticamente todo o elenco de achaques que pudesse acometer um ser humano.

Os barbeiros tinham conhecimentos rudimentares e restritos à execução da sangria. Segundo a divisão do trabalho à época, que apartava com nitidez as artes mecânicas e as artes liberais, isto nada tem de absurdo. Inseridos no primeiro grupo, os barbeiros eram antes de tudo trabalhadores manuais. O próprio Manoel Leitão dizia que o conhecimento anatômico mais pormenorizado era inteiramente supérfluo para um barbeiro. Tanto que, prevenindo-se de leitores excessivamente curiosos, o cirurgião escudou-se nos objetivos que presidiram a redação de sua Prática. Não era seu propósito explicar o movimento e/ou a inércia de órgãos como o coração e o fígado, porque "bast[ava] saber o barbeiro porque se mov[ia] a artéria e a veia não" (fl. 26).

Manoel Leitão foi, de fato, um advogado da sangria e de seus benefícios terapêuticos, mas também da hierarquia entre os saberes de médicos, cirurgiões e barbeiros. Em sua avaliação, aos primeiros caberia a prescrição e aos últimos, a execução. Logo, "barbeiros flebotomanos" (fl. 11) nunca deveriam sangrar sem ordem dos médicos. Caso contrário, corriam o risco de provocar estragos irremediáveis, como o de que fora vítima um mancebo, que, ao se deixar sangrar por um barbeiro duas vezes no pé – porque tinha um fleimão nos testículos – quase perdeu a vida, pois os humores retidos no abscesso, atraídos pelo corte, espalharam-se pelo corpo, causando-lhe uma apnéia. Conta o cirurgião que, se ele não tivesse sido acudido com copiosas sangrias, teria morrido.

O autor de Prática de Barbeiros alinhava-se entre os partidários da sangria derivativa, ou seja, da incisão realizada no local mais próximo da inflamação, pois acreditava que o humor doentio poderia espalhar-se pelo corpo, caso o corte fosse feito distante da região afetada, como costumavam fazer os adeptos da sangria volumosa. A considerar o número de edições de sua obra, que acabou tornando-se a "bíblia dos barbeiros", nos séculos XVII e XVIII, e inspirando outros manuais famosos, como o de Leonardo de Pristo, publicado em 171920, pode-se inferir que esta era a técnica mais utilizada entre os sangradores formados na escola do Hospital Real e dos barbeiros que agiam sob a supervisão de um médico. Porém, levando-se em conta a tabela de preços que o barbeiro Manoel dos Santos apresentaria ao Santo Ofício, quase cem anos depois, na qual só estavam previstas as sangrais de braço e de pé, pode-se concluir que esta não era a prática de todos os barbeiros. Nos cárceres da Inquisição, o que predominava mesmo era a sangria volumosa e, considerando o teor deste conjunto de argumentos, a mais arriscada.



3. O atendimento médico nos cárceres inquisitoriais

O Regimento da Inquisição de 1640 previa que médicos e cirurgiões deveriam acudir com pontualidade todas as vezes que fossem chamados à cadeia.21 Tanto cirurgiões quanto médicos eram expressamente instruídos para ouvir os sentenciados com "paciência" e tratá-los com "caridade", de modo que os próprios presos vissem o cuidado que o Santo Ofício tinha com sua saúde. Deveriam mandar-lhes preparar as mezinhas e remédios prescritos para aplicá-las a tempo e, caso algum prisioneiro manifestasse uma doença grave, era mister informar de pronto à mesa do Tribunal, bem como informá-la a respeito da evolução da enfermidade, pois, se o diagnóstico indicasse a iminência da morte, o confessor deveria ser acionado o quanto antes.

Na prática, o tratamento se resumia à sangria executada pelo barbeiro, que, ao fim e ao cabo, também tratava de outras mazelas, embora fosse contratado pelo Santo Ofício apenas para sangrar e barbear. O resultado desta prestação de serviço, que ultrapassava os limites do saber de um único ofício, quase nunca tinha um final feliz.

Em novembro de 1643, Margarida Vaz sofreu na carne a imperícia do barbeiro Valentim Ferreira, que lhe extraiu um dos dentes e deixou as raízes retidas em seu maxilar. Como a detenta se contorcia em dores após o atendimento, o barbeiro foi chamado novamente aos cárceres para concluir a extração. Valentim, no entanto, foi incapaz de corrigir o malfeito, alegando que não tinha os "ferros" necessários. Diante do imponderável, o alcaide dos cárceres apelou para a ajuda de um saca-molas estrangeiro, residente em Lisboa, para realizar o trabalho22. Margarida foi conduzida pelo guarda José da Silva até à casa do próprio alcaide e lá o profissional resolveu o problema23.

O episódio foi registrado no livro pelo alcaide, mais para notificar que Margarida fora atendida longe da cadeia, e que para ela retornara, do que para questionar a habilidade do barbeiro, pois, apesar de ter sido o pivô do transtorno, Valentim continuou cuidando dos encarcerados. Mas se os inquisidores de Lisboa pouco se importaram com as peripécias de seu barbeiro e sangrador, os presos, por sua vez, passaram a recusar seu atendimento.

Cinco anos após o incidente que vitimara Margarida, durante a visita que fazia aos presos, o médico e cirurgião-mor Francisco Borges receitou novas sangrias a Francisco Leitão. O sentenciado se dispôs a submeter-se às sessões, mas não quis fazê-las com Mestre Valentim, afirmando que, de outra vez em que andara adoentado, fora sangrado pelo barbeiro e que este fizera muito mal as incisões. Alegando que os inquisidores lhe haviam assegurado que, na próxima ocasião, mandariam outro barbeiro, o preso declarou que só se entregaria à lanceta de outro oficial, pois preferia "morrer sem ser sangrado do que morrer obrigado"24. O clamor de Francisco não foi ignorado pelo Tribunal. A bem da verdade, a queixa foi direto aos ouvidos do inquisidor Diogo de Souza, que consentiu que ele fosse tratado por outro barbeiro que assistia os cárceres.

A indignação de Francisco tinha, de fato, seus fundamentos. Mesmo que se desconheçam as circunstâncias exatas que motivaram suas afirmações, não há dúvidas de que teve sua vida em perigo, exatamente como Margarida, havia alguns anos. Ao que tudo indica, Valentim estava entre os tais barbeiros que desconheciam a diferença entre uma veia e uma artéria e que gostavam de "florear com a lanceta". Além de tudo, era afoito, porque, mesmo sem os instrumentos adequados, dispôs-se a faturar alguns réis, macerando a arcada dentária de sua paciente. Entretanto, para tranqüilidade geral dos detidos, era pouco assíduo. Por isto, desde julho de 1639, passou a ser substituído, em casos de impedimento, por Manoel Cosmo25, um barbeiro experiente, com mais de vinte anos de ofício e que tinha uma tenda na Rua das Flores.

Mestre Cosmo estava entre os oficiais mecânicos que desmentiam a fama de ignorantes, que o mestre em artes e cirurgião Manoel Leitão imputou aos oficiais de sangrar e barbear, em sua Prática de Barbeiros. Embora não fosse o titular do cargo de sangrador do Santo Ofício, dominava muito bem a arte de sangrar, tanto assim que conquistou depressa a confiança dos presos. O preso Francisco Leitão deixou-se sangrar por ele, quando somava apenas quatro meses de trabalho nos cárceres. É possível que o barbeiro da Rua das Flores tenha entrado nos cárceres para conter a animosidade que seu irmão de ofício despertava nos presos. Após os brados do encarcerado a quem atendera mal, Valentim parece ter sido suspenso. E, se assim não foi, é muito provável que se tenha tornado alvo de total rejeição entre os encarcerados, pois somente em 29 de abril de 1641, por ordens expressas da Mesa inquisitorial, o barbeiro retomou suas atividades na prisão. Entretanto, desde então, passou a dividir a meias as sangrias com Manoel Cosmo, que se tornou funcionário do quadro, ainda que sem provisão26.

Profissionais sem qualquer formação universitária, os barbeiros foram, no entanto, personagens de enorme importância para as práticas curativas no Portugal do Antigo Regime. O contato estreito com médicos e cirurgiões distinguia-os dos demais oficiais mecânicos e não era incomum que muitos se fizessem passar por estes últimos. Em meados do século XVIII, perderam de vez a primazia para os cirurgiões-sangradores, prova de que a sangria ainda levaria uma centúria para ser contestada pelo saber médico oficial em território português.
Revista Tempo - UFF

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